A epidemia de peste que quase dizimou a humanidade 5 mil anos atrás
A peste bubônica - também conhecida como peste negra - é
famosa por ter causado epidemias devastadoras que acometeram a humanidade. Em
1347, por exemplo, estima-se que a doença tenha matado cerca de um terço da
população europeia.
Acreditava-se que essa teria sido a primeira das grandes
epidemias de peste. Mas uma descoberta de cientistas franceses, suecos e
dinamarqueses traz indícios de que uma cepa ancestral da mesma bactéria - a
Yersinia pestis - já causava mortes em humanos no Neolítico.
"Nossa pesquisa revelou o que acreditamos que foi a
primeira grande pandemia da história humana", afirmou à BBC News Brasil o
biólogo Nicolás Rascovan, principal autor do estudo, publicado nesta quinta na
revista científica Cell. "Essa pandemia pode ter desempenhado um papel em
importantes eventos históricos da época."
Rascovan enumera três evidências principais do estudo. Entre
5,7 mil e 5,1 mil anos atrás - para a história do mundo, um espaço curto de
tempo -, muitas linhagens independentes de Yersinia pestis divergiram e se
espalharam por toda a Eurásia.
No mesmo intervalo de tempo, meios conduzidos por humanos e
capazes de espalhar uma doença sobre grandes regiões geográficas - como meios
de transporte sobre rodas e tração animal - também se expandiram por toda essa
grande região.
A mesma época coincide com o surgimento dos primeiros
assentamentos humanos considerados de grande porte - ou seja, aglomerações com
até 20 mil pessoas que viviam em contato próximo com animais e provavelmente
sob condições sanitárias precárias.
"Assim, pela primeira vez na história da humanidade,
houve simultaneamente condições perfeitas para o surgimento de doenças, nesses
grandes assentamentos, ao mesmo tempo que havia tecnologia suficiente para
disseminá-las rapidamente por grandes distâncias", prossegue o biólogo.
Para corroborar essas evidências, pesquisas arqueológicas
apontam que, no mesmo período, populações neolíticas europeias estavam em
declínio. "Ao mesmo tempo em que a peste emergiu e se espalhou. Logo,
supomos que ela tenha desempenhado papel importante nesse processo", diz
Rascovan.
Arqueologia da doença
Mas os pesquisadores analisaram também bancos de dados com
informações genéticas obtidas de fósseis humanos do período. E chegaram a uma
mulher, que teria vivido há mais de 5 mil anos onde hoje é a Suécia e morreu
com 20 anos em decorrência de uma cepa ancestral da peste. Tudo indica,
portanto, que esta seja a origem genética da Yersinia pestis.
"O tipo de análise que fizemos nos permite voltar no tempo
e observar como evoluiu esse patógeno que teve efeito tão grande na
humanidade", comenta outro autor da pesquisa, o cientista Simon Rasmussen.
"Essa cepa nos permitiu aprender coisas interessantes
sobre o início da história da peste", afirma Rascovan. "Como foi
encontrada num lugar e tempo que não se encaixava em nenhum modelo anterior do
surgimento e propagação da praga, isso nos fez repensar tudo e construir um
novo modelo evolutivo. Ao descobrir que esta linhagem era a mais antiga, a mais
ancestral conhecida até o momento, podemos deduzir que a peste provavelmente
surgiu nos primeiros grandes assentamentos humanos europeus, de onde
provavelmente se espalhou rapidamente por toda a Eurásia."
Os cientistas acreditam que, a partir de agora, arqueólogos que
estudam remanescentes humanos do período Neolítico poderão ter as atenções
também voltadas para indícios da bactéria da peste. Além, é claro, de
considerar o impacto destrutivo das doenças em análises das sociedades de
então.
O que certamente permanecerá sendo mistério foi como a
humanidade primitiva conseguiu vencer a primeira grande pandemia, não sendo
extinta completamente. "A peste é causada por uma das bactérias mais
letais que já existiram para os humanos", completa Rasmussen.
O pesquisador acredita que a bactéria tenha evoluído de algo
praticamente inofensivo - e este ponto é importante para entender como os
patógenos se tornam mortais. "Muitas vezes, pensamos que esses
superpatógenos sempre estiveram por perto", afirma Rasmussen.
"Pois a peste evoluiu de um organismo que era
relativamente inofensivo. Mais recentemente, aconteceu o mesmo com varíola,
malária, ebola e zika. Trata-se de um processo muito dinâmico, que continua
acontecendo. Isso é muito interessante para ser estudado."
Rasmussen acredita que o achado completa o que já se sabia
sobre o declínio das populações europeias no período. "Os dados se
encaixam. Se a peste evoluiu nos grandes assentamentos, então, quando as
pessoas começaram a morrer, os assentamentos acabaram abandonados e destruídos.
Isso é exatamente o que se observa por volta de 5,5 mil anos atrás",
explica ele. "Então, as pessoas começaram a migrar ao longo de todas as
rotas de comércio possibilitadas pelo transporte da época, expandindo-se
rapidamente em toda a Europa nesse período."
O que explica o fato de a praga ter chegado ao pequeno
assentamento humano na região da Suécia, onde resquícios da bactéria foram
observados na tal mulher morta aos 20 anos.
Yersin, o descobridor
Na mais famosa pandemia de peste negra, no século XIV,
estima-se que até 200 milhões de pessoas tenham morrido na Eurásia. A doença é
muito devastadora - se não tratada, a letalidade é de 100% dos casos.
A bactéria Yersinia pestis é transmitida por meio de pulgas
de ratos.
Até o fim do século 19, entretanto, não se sabia exatamente
o que causava a grave doença. Em 1894, o excêntrico cientista suíço Alexandre
Yersin (1863-1943), um dos mais brilhantes discípulos de Louis Pasteur
(1822-1895), descobriu e isolou a bactéria, que acabou batizada como Yersinia
pestis, justamente em homenagem ao cientista.
"Yersin não se ilude com relação a sua notoriedade.
Sabe que deixará atrás de si somente essas duas palavras em latim, Yersinia
pestis, e que só os médicos conhecerão", escreve o autor francês Patrick
Deville no livro Peste e Cólera, lançado no Brasil pela Editora 34.
A obra conta a vida errante de Yersin e toda a epopeia que
cercou a descoberta da bactéria. "Yersin, se fosse católico, seria feito
santo, seria canonizado imediatamente como aquele que venceu a peste, pelo modo
como a história parece ter inspiração sobrenatural", diz outro trecho.
Via | bbcbrasil
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