Pesquisadores brasileiros criam pomada contra picada letal de aranha
Segundo a pesquisadora Denise Tambourgi, a pomada é feita à
base de tetraciclina, substância conhecida e já usada como antibiótico
Ela é pequena, com um tamanho que varia de 0,6 mm a 2 cm,
mas pode causar um estrago considerável. Todos os anos, a aranha-marrom
(Loxosceles sp) pica cerca de 7 mil pessoas no Brasil - 7.441, em 2016, último
dado disponível do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do
Ministério da Saúde.
O veneno dela pode causar necrose da pele, falência renal e
até a morte das vítimas - seis, naquele ano.
Para diminuir esses problemas, cientistas do Instituto
Butantan (IB) desenvolveram uma pomada, cujos efeitos curativos já foram
comprovados em testes realizados em cultura celular e animais.
Segundo a pesquisadora do IB, Denise Tambourgi, principal
responsável pelo trabalho, a pomada desenvolvida é feita à base de
tetraciclina, substância conhecida e já usada como antibiótico.
"Utilizamos numa concentração abaixo da que seria microbicida, no
entanto", explica.
"Ou seja, menor do que a necessária para ser
considerado antibiótico. Mas a empregamos em uma dosagem capaz de interferir na
atividade da esfingomielinase D, proteína que é o componente principal do
veneno da aranha e que está envolvida no processo de inflamação e de destruição
do tecido (necrose) e outros efeitos."
Além de lesão cutânea - que ocorre em 80% dos casos e pode
levar meses para ser curada -, a picada da Loxosceles também pode provocar, nos
outros 20% das vítimas, efeitos sistêmicos, como hemólise (alteração,
dissolução ou destruição dos glóbulos vermelhos do sangue), agregação
plaquetária (que causa coágulos nos vasos sanguíneos, que dificultam ou impedem
a circulação), inflamação e falência renal, que podem levar à morte.
Origem da pomada
A história das pesquisas de Denise que levaram à criação da
pomada é longa. Ela começou o trabalho para decifrar os principais componentes
da toxina da aranha-marrom em 1994. Para isso, ela e sua equipe lançaram mão da
engenharia genética.
Como cada Loxosceles produz muito pouco veneno - apenas
cerca de 30 microgramas - seria muito difícil conseguir a quantidade necessária
para os estudos. Então, os pesquisadores inseriram um gene dela na bactéria Escherichia
coli, criando assim uma biofábrica da esfingomielinase D, passando a produzi-la
em volume suficiente para as pesquisas.
Ao longo do trabalho, Denise e sua equipem descobriram que o
veneno da aranha-marrom pode causar, além de efeitos já conhecidos, reações
secundárias, que são desencadeadas principalmente pela proteína
esfingomielinase D.
"Costumo dizer que o veneno só dá o 'start' e a
proteína altera as células", explica. "Depois, ocorre uma
desregulação do organismo, que leva à produção de proteases - enzimas cuja
função é quebrar as ligações químicas de outras proteínas, o que, por sua vez,
causa a morte celular e a necrose. São essas proteases, portanto, que devem ser
inibidas pela pomada."
Resumindo, o estudo coordenado por Denise decifrou o mecanismo
de ação do veneno lançado pela aranha-marrom e também a forma sistêmica e
cutânea da doença.
Testando o antídoto na pele
Os primeiros testes, realizados em cultura de células de
pele humana, mais especificamente queratinócitos e fibroblastos, e em animais
começaram a ser feitos em 2005 e se estenderam até agosto de 2018.
"Realizamos vários experimentos, aplicando o veneno da
aranha-marrom nas culturas", explica Denise. "Como esperávamos, as
células morriam. Depois, as expomos à toxina e à tetraciclina, em várias
dosagens, ao mesmo tempo. Constatamos, então, que o veneno não era mais capaz
de matar as células."
Os pesquisadores passaram, então, para o passo seguinte do
trabalho, que foi o teste em animais. "Os coelhos foram escolhidos por
serem um bom modelo para o estudo da necrose de pele causada pela toxina da
Loxosceles", explica Denise. "A lesão deste animal é parecida com a
que se forma no ser humano. Injetamos o veneno na pele deles e depois de
algumas horas começamos a tratá-los com uma pomada que continha tetraciclina e
lanolina. Esta última entrou na composição porque é capaz de levar a droga para
as camadas mais profundas da pele."
Os resultados foram animadores. Nos coelhos tratados com
tetraciclina, a lesão regrediu rapidamente. "A pomada reduziu o tamanho da
lesão em cerca de 80%", conta Denise. "Diante desses resultados,
partimos para os testes clínicos em seres humanos."
Como a tetraciclina é uma droga já testada para várias
infecções e, por isso, usada comercialmente, não é necessário passar pelas
várias fases de ensaios exigidos pelos protocolos de pesquisa para a liberação
de medicamentos. Ela pode ser testada diretamente em humanos. "Na verdade,
estamos apenas dando uma nova aplicação a esta substância", diz a
pesquisadora.
Essa fase começou em outubro. Serão tratados no total 240
pacientes, 120 com a pomada e 120 com placebo, de 61 hospitais de Santa
Catarina, estado onde ocorre o maior número de picadas e no qual Denise tem
várias parcerias, inclusive com a Universidade Federal de lá (UFSC), além de
médicos, enfermeiros e profissionais da área de farmácia e de saúde. Até o
momento, 20 pacientes já estão sendo tratados.
Aqueles que recebem placebo não ficarão sem tratamento. Eles
receberão o que é usado hoje para a picada, que é o soro específico antiveneno
da aranha-marrom ou um inespecífico, contra toxinas de aracnídeos em geral. As
picadas também podem ser tratadas com medicamentos chamados corticosteróides,
mais conhecidos com corticóides.
Se os resultados dos testes clínicos forem os esperados, a
pomada poderá chegar às farmácias. Mas não há prazo para isso. Depois de
aprovada nos ensaios, ela ainda precisa ser liberada para uso em uso em humanos
e comercialização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Se e
quando isso ocorrer, seu mercado poderá ser maior que apenas o do Brasil.
Além de acidentes com Loxosceles nas Américas do Sul,
Central e do Norte, nos últimos anos, ocorreram também picadas na Europa, com
relatos de casos em países como Espanha, França, Portugal e Itália - este
chegou a registrar um caso de morte.
Via | BBCBRASIL
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