Em 2015, o vírus da zika, originário da África, que deve ter
chegado ao Brasil durante a Copa do Mundo de 2014, causou pânico entre mulheres
grávidas, principalmente do Nordeste, por causa de sua capacidade de causar
microcefalia em fetos, doença em que o cérebro e a cabeça da criança são
menores do que deveriam ser. Agora, pesquisadores da Universidade de São Paulo
(USP) descobriram que ele também tem um lado bom, podendo ser um aliado, com a
perspectiva de se tornar um medicamento ou tratamento para alguns tipos de
câncer do cérebro.
Experimentos realizados com camundongos em 2017, mas só
divulgados recentemente num artigo científico publicado na revista Cancer
Research, da Associação Americana para a Pesquisa do Câncer, tiveram resultados
muito promissores.
"Em um terço dos animais testados a doença despareceu
completamente, inclusive as metástases", revela a geneticista Mayana Zatz,
diretora do Centro de Pesquisas em Genoma e Células-tronco (CEGH-CEL), do
Instituto de Biociências da USP, e uma das autoras da pesquisa. "Nos
outros dois terços, houve uma redução significativa do tumor."
Ela conta que a ideia de testar o vírus contra o câncer de
cérebro surgiu de um fato que deixou os pesquisadores do seu grupo CEGH-CEL
intrigados: durante o surto de 2015, a maioria das mulheres infectadas deu à
luz bebês não afetados. De acordo com Mayana, a incidência da síndrome
congênita do zika (ZCS), como a doença é conhecida, varia de 6 a 13% - em
alguns países até menos.
Também chamou a atenção o fato de que mesmo as mães que
tiveram filhos infectados não apresentaram sintomas ou os tiveram muito leves.
"Ficou claro que o vírus não era muito prejudicial para as mães, mas tinha
uma forte inclinação pelos cérebros em desenvolvimento dos fetos", diz
Mayana. Surgiu a pergunta, então: isso poderia ser explicado por uma maior
suscetibilidade genética em bebês afetados ou por um mecanismo de proteção
naqueles que nasceram normais?
Havia duas maneiras de obter respostas para essa questão.
"Uma seria comparar grupos de recém-nascidos não afetados com de afetados,
todos confirmados como expostos ao zika vírus durante a gravidez", diz
Mayana. "Na prática, no entanto, seria extremamente difícil realizar um
estudo desse tipo. Primeiro, porque seria complicado identificar exatamente
quando a infecção ocorreu e também porque teríamos que comparar mães com
diferentes origens étnicas e expostas a diferentes condições ambientais.
Portanto, decidimos que a melhor abordagem seria focar nos gêmeos."
Foi levado em conta ainda o fato de que, conforme
demonstrado em várias pesquisas anteriores, o vírus da zika tem preferência
pelas células do sistema nervoso central (SNC), principalmente pelas
células-tronco neurais, que dão origem aos neurônios. Por isso, a infecção do
feto diminui consideravelmente o número dessas células, causando problemas
como, por exemplo, a microcefalia.
Paralelamente, estudos feitos pelo grupo da USP coordenado
por Mayana, sobre tumores do SNC, mostravam que as células desse tipo de câncer
têm características semelhantes às das células-tronco neurais, com alta
capacidade de se dividir e estão ligadas ao processo de disseminação da doença,
ou seja, à metástase. Por isso, os pesquisadores decidiram investigar se o
zika, que infecta e mata células-tronco normais, poderia fazer o mesmo com as
células tumorais que têm características semelhantes as das primeiras.
Voltando aos gêmeos, a ideia era encontrar pares
discordantes, isto é, um bebê afetado e outro não. Foram encontrados três
casos. "Em seguida, obtivemos células neuroprogenitoras (NPCs) derivadas
de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS) [células comuns induzidas em
laboratório a voltarem ao estágio de células-tronco, com potencial de se
transformarem em qualquer tecido do corpo humano] desses três pares e as
infectamos in vitro com o zika", conta Mayana. "Observamos que o
vírus destruiu significativamente mais NPCs de bebês afetados - replicando o
que havia acontecido na natureza - do que dos sadios.."
Na etapa seguinte, os pesquisadores testaram, in vitro, a
ação do zika em seis linhagens de células cancerosas que eles já tinham
prontas. Dessas, três eram de cânceres embrionários do sistema nervoso central
(SNC) muito agressivos, o meduloblastoma (duas linhagens) e o tumor teratoide
rabdoide atípico (AT/RT, na sigla em inglês), que afetam principalmente
crianças com menos de cinco anos. Também foram usadas células de câncer de
mama, próstata e colorretal.
Essa fase inclui um estudo de escalonamento de dose, isto é,
a quantidade do vírus injetada nas células tumorais em cultura foram sendo
aumentadas paulatinamente até se chegar àquela capaz de promover a infecção. Eles
verificaram que mesmo pequenas quantidades do zika eram suficientes para
infectar as células de câncer do SNC. Isso não ocorreu nos outros tipo de
câncer (mama, colorretal e próstata).
O passo seguinte - e mais importante da pesquisa - foi
testar a ação do zika in vivo, no caso, em camundongos, com o sistema
imunológico suprimido. Para realizar o experimento eles foram divididos em três
grupos. Um deles, recebeu só o vírus. Em dois deles, foram injetadas células
tumorais humanas para induzir o surgimento de câncer 'humano' nos seus
cérebros. Um desses dois grupos, foi "tratado", depois de desenvolver
o câncer em estado avançado, ou seja, recebeu também o zika.
Os resultado foram
muito promissores. Em 20 dos 29 camundongos que receberam a injeção com zika,
os tumores regrediram, e, em sete, desapareceram completamente, inclusive a
metástase. Mas não foi só isso. O experimento mostrou que o vírus de fato
possui mais afinidade com as células do SNC, infectando e matando as do câncer
de forma seletiva.
Além
disso, os pesquisadores também observaram que o vírus não foi capaz de infectar
os neurônios já desenvolvidos, o que é fundamental do ponto de vista da
segurança de um tratamento. Se o zika destruísse igualmente neurônios adultos
saudáveis seria mais difícil usá-lo no futuro, numa terapia contra o câncer
cerebral. Outra boa notícia é que, depois de atacar os tumores, o vírus não
consegue se reproduzir com eficiência - o que, no caso de uma terapia, evitaria
que ele próprio causasse algum dano ao paciente.
Segundo
Mayana, a maior novidade do trabalho foram os testes sobre a capacidade do
vírus de agir contra o câncer cerebral realizados pela primeira vez em
experimentos pré-clínicos com tumores humanos. "Isto só foi possível pela
indução de deles em camundongos", diz. "Com esse modelo experimental,
pudemos mostrar que o zika não apenas induziu a remissão completa do câncer,
mas também inibiu efetivamente a disseminação metastática de células tumorais
do SNC."
Agora,
o próximo passo será melhorar a qualidade do vírus. "Para isso, dependemos
de investidores", diz Mayana. "Estamos conversando com empresas que
queiram produzi-lo em condições clínicas. São necessários laboratórios
especiais para garantir que ele seja cultivado sem outros patógenos."
Mayana
revela que a grande esperança do grupo é desenvolver um medicamento ou
tratamento para câncer do sistema nervoso central. "Nossos resultados
mostrando como um inimigo pode se tornar um importante aliado são muito
estimulantes", diz. "Esperamos poder testemunhar em breve a eficácia
do zika no tratamento de tumores cerebrais com segurança em humanos. Se tudo
certo, dentro de uns dois ano isso poderá ocorrer."
Via | BBC
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