Uma antiga forma de tratamento de feridas crônicas, que
havia sido descartada com o surgimento dos antibióticos, está voltando a ser
usada em alguns hospitais dos EUA, Europa e América Latina. No Brasil, ela vem
sendo pesquisada em algumas universidades e é aplicada rotineiramente em pelo
menos um hospital, o Universitário Onofre Lopes (HUOL), da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN).
Trata-se da terapia larval ou larvoterapia, que, como o nome
sugere, é o uso de larvas, no caso de moscas, para a cicatrização de ferimentos
que resistem à cicatrização.
Elas agem na ferida por meio de quatro mecanismos: removem o
tecido necrosado (morto), rompem o biofilme bacteriano (uma comunidade de
microrganismos extremamente organizada que interfere muito no processo de
reparação da ulceração), promovem o crescimento de tecido sadio e eliminam
bactérias que causam a infecção.
Apesar de parecer repulsivo para muita gente, o tratamento
tem se mostrado em alguns casos mais eficiente do que os medicamentos e
cicatrizantes tradicionais.
"Todos os nossos pacientes que usaram a terapia
apresentaram melhora significativa do processo infeccioso, tiveram suas feridas
'limpas' com rapidez, relataram que o odor (mau cheiro) da lesão desapareceu
nas primeiras aplicações", garante Julianny Barreto Ferraz, enfermeira
presidente da Comissão de Curativos do HUOL, onde o procedimento é usado desde
2012.
"Usamos as larvas da mosca da espécie Chrysomya
megacephala, encontradas em todo o território brasileiro", diz.
Em São Paulo, a pesquisadora colombiana Andrea Diaz Roa,
doutoranda no Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Centro de
Toxinas, Resposta-Imune e Sinalização Celular (CeTICS), um Centro de Pesquisa,
Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp), vem realizando, desde 2015, pesquisas com larvas
de outra espécie, a Sarconesiopsis magellanica.
"Nos hospitais dos Estados Unidos e de alguns países na
Europa e da América Latina, a mosca utilizada para tratamento de feridas
crônicas de difícil cicatrização é a Lucilia sericata", conta.
Ela explica que ulcerações crônicas são aquelas que
permanecem inflamadas por mais de seis meses sem cicatrizar.
É o caso, por exemplo, das lesões provocadas por
leishmaniose ou aquelas conhecidas como pé diabético que, muitas vezes,
resultam em amputação.
Terapia antiga, abordagem nova
Ao contrário do que ocorria antigamente, a terapia larval
moderna é feita em condições de assepsia muito melhores.
As moscas são criadas em laboratório e colocam seus ovos
sobre material orgânico. As larvas estéreis são colocadas no interior das
feridas, onde permanecem por 24 a 48 horas. Utilizam-se em média 20 delas por
centímetro quadrado.
"O ferimento é coberto durante o procedimento e lavado
depois da retirada das larvas", explica Andrea. "Dependendo do caso,
uma única aplicação é suficiente. Elas se alimentam apenas da parte necrosada
da lesão."
Antes de vir fazer seu doutorado no Brasil, Roa utilizou em
seu país larvas em muitos pacientes com problemas de feridas crônicas, com bons
resultados e sem necessidade de amputações.
"Usei também em coelhos com diabete induzida e
ferimentos provocados, também com bons resultados", revela. "Esse
trabalho foi feito durante o meu mestrado, sob orientação de professores e
médicos colombianos."
No Brasil, seu orientador é o pesquisador científico do
Instituto Butantan, Pedro Ismael da Silva Jr.
"Iniciamos uma nova fase do trabalho", diz ele.
"Durante a terapia, as larvas, além de removerem os tecidos mortos,
liberam várias substâncias envolvidas na cura e cicatrização. Algumas delas são
peptídeos (pequenas moléculas) antimicrobianos."
De acordo com Silva Jr., Roa veio ao Brasil para, junto com
ele, isolar e caracterizar esses peptídeos antimicrobianos, que apresentam um
papel importante nesse tratamento.
No momento, eles já têm isolados várias dessas pequenas
moléculas, mas apenas duas caracterizadas. Uma delas é a sarconesina,
descoberta pela pesquisadora colombiana. O nome deriva da espécie de mosca que
ela estuda (Sarconesiopsis magellanica).
O objetivo agora é utilizar a sarconesina como princípio
ativo de um medicamento. Por ser uma molécula relativamente pequena, ela pode
ser sintetizada artificialmente em laboratório ou ser produzida por engenharia
genética, introduzindo-se as bases de DNA que a codificam em uma bactéria
hospedeira.
"Conhecemos sua sequência de aminoácidos, avaliamos sua
atividade antimicrobiana em relação a vários tipos de bactérias e estamos
cogitando apresentar um pedido de patente", diz Silva Jr..
Mesmo com o desenvolvimento da nova droga, o uso de larvas
deverá continuar, no entanto. O pesquisador do Butantan explica que os
peptídeos antimicrobianos são apenas uma parte das substâncias envolvidas na
cicatrização de feridas crônicas.
"Eles impedem a contaminação das lesões por fungos e
bactérias, permitindo a ação de outras substâncias que levam à cura e à
cicatrização", diz. "Sem contar com a parte mecânica em si, pois as
larvas removem os tecidos mortos e estimulam a substituição por novos tecidos.
Não podemos dizer que vamos abandoná-las em um futuro próximo."
Boa aceitação
Ao contrário do que se poderia esperar, a maioria dos
pacientes aceita bem o tratamento.
"A reação deles é de completa aceitação por sentirem a
melhora clínica em poucos dias", assegura Ferraz.
"Uma minoria sente receio quanto ao fervilhar das
larvas sobre seu ferimento, mas desde que iniciamos a aplicação no nosso
hospital, nenhum (paciente) negou-se a fazer e todos, sem exceção, recomendam
para outros a terapia como excelente forma de limpeza de sua ferida."
Silva Jr. tem uma possível explicação para isso. De acordo
com ele, em geral as pessoas que procuram por esse tratamento sofrem com as
feridas crônicas durante muito tempo. Muitos já tiveram amputações de membros e
passaram por todo tipo de procedimento médico e não encontraram soluções.
"Embora possa parecer para os pacientes e familiares um
método não usual e um tanto incomum - nojento para muitos - , acaba sendo uma
nova possibilidade de cura", explica. "Principalmente com os
resultados positivos obtidos por quem já se submeteu à terapia larval."
O trabalho de Roa foi apresentado e premiado na 47ª Reunião
Anual da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, realizada em
maio em Joinville (SC). Ela acredita que o prêmio vai trazer mais reconhecimento
para a larvoterapia.
"Muitas vezes, é uma prática que não tem muita
aceitação, pois diferentemente do remédio, a larva está viva", diz.
"A apresentação vai ajudar a dar mais visibilidade para o tema e pode
quebrar preconceitos."
Os trabalhos de Andrea e Ferraz não são os únicos no Brasil.
"Já foram aplicações em pacientes diabéticos, em
Petrópolis (RJ e em Pelotas (RJ), a terapia tem sido usada na área
veterinária", conta Ferraz.
"Em Campinas (SP), no final do ano deverão acontecer os
primeiros tratamentos, provavelmente em portadores de pé diabético. Há muitos
preconceitos em cima das larvas, mas o fruto de nossas pesquisas garante que se
trata de um procedimento seguro, de baixo custo e eficaz, muito oportuno para a
realidade brasileira, carente de centros cirúrgicos e de profissionais da saúde
em número suficiente para garantir um atendimento adequado."
Via | BBC
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