Maria Isabel Achatz ainda estava na faculdade de Medicina,
em São Paulo, no final dos anos 1990, quando encontrou a paciente que mudaria
sua carreira e sua vida para sempre. Era uma mulher que havia tido câncer seis
vezes - em todas elas, tumores primários, ou seja, independentes um do outro.
"Naquela época ainda não podíamos consultar a internet,
então fui na biblioteca da universidade, comprei um artigo científico e tive
que esperar um mês para que ele chegasse", relembra.
"Falei com meus orientadores que achava que era um caso
de Síndrome de Li-Fraumeni, e eles me disseram: 'Isabel, só tem 200 casos dessa
doença no mundo. Você acha realmente que viu um deles aqui?'. E eu respondi:
'Acho, sim'."
O mistério da paciente não foi resolvido, porque a estudante
deixou de atendê-la. Mas, por causa da suspeita, ela descobriu, anos depois,
uma mutação genética que tornou a doença, considerada rara, mais comum no Sul e
no Sudeste do Brasil do que em qualquer lugar do mundo.
"No meu primeiro ano trabalhando do A.C. Camargo Cancer
Center (Hospital do Câncer em São Paulo) eu vi 35 pacientes que diagnostiquei
com a síndrome. As pessoas diziam que eu estava louca, mas percebi que havia
algo de diferente ali."
A descoberta também uniu famílias de diversas cidades em
torno de um surpreendente ancestral comum: um tropeiro do século 18.
Guardião do genoma
A Síndrome de Li-Fraumeni é uma série de tipos de câncer
causados pela mutação no TP53, considerado um "guardião do genoma".
"Quando as células se dividem e ocorre um erro, o
organismo tem que corrigir esse erro para que a célula não fique alterada ou
provocar a morte desta célula. O câncer ocorre quando o organismo não consegue
fazer nenhuma das duas coisas, e as células danificadas se proliferam
desordenadamente", explica a oncogeneticista Maria Nirvana Formiga, atual
líder do departamento de oncogenética do A.C. Camargo.
O TP53 executa várias funções no ciclo celular e tenta
impedir justamente que as células que têm erros se proliferem, dando origem a
tumores. Uma mutação nele compromete essa característica. E basta que um dos
pais tenha a mudança para que ela seja passada adiante.
"Uma pessoa com Li-Fraumeni basicamente tem uma chance
bem superior de desenvolver câncer em determinadas partes do corpo, mais do que
a população em geral", diz Formiga.
Um portador ou portadora da mutação genética pode ter
somente um tumor, diversos tumores independentes, como a primeira paciente de
Maria Isabel Achatz, ou mesmo nunca desenvolver a doença. Mas, em geral, é
comum que tenham um histórico de diversos familiares que morreram de câncer.
Os tipos de câncer mais característicos da síndrome são o
câncer de mama antes dos 35 anos, os chamados sarcomas ósseos ou de partes
moles (que podem aparecer em diversos tecidos do corpo, como os músculos) antes
dos 45 anos, leucemias, tumores nas glândulas adrenais (que ficam acima dos
rins) e no sistema nervoso central.
"Quando há um familiar com um desses tumores e outro
familiar com outro, já consideramos que pode haver Li-Fraumeni naquela
família", explica a oncogeneticista.
Ancestral tropeiro
No início dos anos 2000, a pesquisa de Maria Isabel Achatz
chamou a atenção de um pesquisador francês, que a encorajou a descobrir o
porquê da "situação única" que ela havia observado em seus pacientes
no Brasil. Além de sua pesquisa em São Paulo, cientistas no Paraná e no Rio
Grande do Sul já faziam questionamentos semelhantes sobre a frequência com que
se deparavam com a síndrome.
Ela começou pela análise do gene TP53 nas pessoas que
suspeitava que sofressem de Li-Fraumeni, para encontrar a mutação que causava a
doença - mutações diferentes no mesmo gene podem levar à síndrome.
"Um gene é composto de cinco partes e, na época, a
maioria das pessoas analisava apenas a parte central, que faz a ligação com o
DNA. Mas nos meus pacientes eu não encontrava nada. Fiquei arrasada, achei que
estava diagnosticando errado", relembra.
Mas a geneticista descobriu que a mutação de seus pacientes
estava em outra parte do gene TP53, o que tornava o Li-Fraumeni brasileiro
único no mundo.
Com a descoberta, ela voltou ao país e começou a pedir que
alguns de seus pacientes perguntassem aos familiares se eles também não teriam
interesse em saber se, por acaso, teriam a doença.
Foi assim que a família da nutricionista Regina Romano, de
33 anos, descobriu por que perdia tantos membros para o câncer.
"Uma sobrinha da minha avó se tratava com a doutora
Maria Isabel Achatz. E aí ela começou a pesquisa e veio atrás da família no
interior de São Paulo", disse à BBC Brasil.
Na primeira reunião com a família, a médica se viu, pela
primeira vez, explicando simultaneamente a quase 30 pessoas, na cozinha da
matriarca, do que se tratava a síndrome e por que ela precisaria coletar o
sangue de todos eles - ou, pelo menos, de todos os que quisessem se submeter a
um teste genético.
"Quando voltei para São Paulo eles me ligaram de novo e
disseram que toda a família decidiu testar. Mas eu não sabia que viriam dois
ônibus de turismo, porque um deles era prefeito da cidade vizinha e organizou a
viagem", conta.
A matriarca da família, segundo os resultados, tinha o gene
defeituoso, apesar de nunca ter desenvolvido a doença. Pelo menos três de seus
quatro filhos também tinham, e passaram a alguns de seus netos.
"Ela disse para mim: 'Isso é coisa do meu avô tropeiro.
Ele sumia uns seis meses e voltava. Acho que deixava umas famílias aí pelo
caminho'. E aquilo me chamou a atenção", relembra a médica.
Durante o século 18, os tropeiros eram homens que conduziam
tropas de cavalos por estradas regiões Sudeste e Sul do Brasil fazendo o
comércio de mercadorias.
"Na época, eu comprei um livro sobre os tropeiros onde
estava um mapa da rota mais comum que eles seguiam. Em seguida, marquei em
outro mapa as cidades de onde vieram os pacientes que eu tinha diagnosticado.
Sobrepus os dois mapas e eram idênticos."
Mas se diversos tropeiros faziam a mesma rota, como saber se
apenas um foi o responsável pela transmissão da síndrome de Li-Fraumeni para
diversas famílias?
Com o material genético dos pacientes, os pesquisadores
fizeram também uma comparação de polimorfismos intragênicos - marcas
específicas nos genes que só pessoas da mesma família apresentam e que funciona
como uma espécie de teste de paternidade.
"Encontramos em todas as nove famílias grandes que
testamos o mesmo painel, e a probabilidade de encontrar isso na população é
quase impossível. Ficou claro que eles têm uma origem comum. Aí fizemos uma
hipótese histórica", afirma Achatz.
O dilema de 'passar o gene adiante'
A própria Regina Romano demorou cerca de três anos para
descobrir que também carregava o "gene tropeiro" da família. Ela não
estava na cozinha da avó no dia em que Maria Isabel Achatz, acompanhada de seu
orientador francês, esteve lá.
"Meu pai fez o teste genético, o irmão dele e mais
alguns primos, mas ele não contou para mim. Só fiquei sabendo quando a médica
pediu que eles refizessem o exame, porque alguns resultados se perderam",
diz.
Em 2014, já com o diagnóstico da síndrome, Regina descobriu
um câncer de mama. "Eu já fazia acompanhamento, mas a gente nunca acha que
vai ter. Então foi difícil. Eu ia casar dali a um ano, queria engravidar e dar
de mamar", relembra, emocionada.
A Síndrome de Li-Fraumeni não pula gerações. Isso quer dizer
que a probabilidade de filhos herdarem a mutação genética dos pais é alta,
mesmo que eles nunca tenham tido um câncer.
Ao pensar em engravidar, Regina foi confrontada pela
primeira vez com a possibilidade de que sua filha também tivesse a condição.
Crianças precisam ser acompanhadas com frequência - devem fazer exames a cada
quatro meses pelo menos até os cinco anos de idade - por causa do alto risco de
tumores nas glândulas adrenais nesse período.
Alguns pacientes, segundo médicos e psicólogos do hospital
A.C. Camargo, optam por procedimentos como vasectomia e histerectomia, para
evitar passar a síndrome adiante.
Os especialistas também aconselham os casais sobre a
possibilidade de fazer a fertilização in vitro e pré-selecionar embriões que
não tenham a mutação. Regina, no entanto, decidiu enfrentar a loteria da
genética.
"Pra mim não fazia sentido fazer essa pré-seleção
porque seria como se minha mãe tivesse dito: 'Não quero você aqui, Regina'. Meu
marido e eu combinamos que aceitaríamos o que viesse, fosse com síndrome ou sem
síndrome", afirma.
"Mas quando eu engravidei é que veio toda a
preocupação. Com um mês e meio fui tirar o sangue dela para o teste genético e
acho que nunca chorei tanto."
A filha de Regina não herdou a mutação da família. Mas uma
sobrinha, sim. "Penso em ter outro bebê, mas é muito difícil considerar
isso agora."
Diferenças brasileiras
Por ser em um local diferente do gene TP53, a mutação
brasileira faz com que a síndrome de Li-Fraumeni tenha características
distintas aqui quando comparada com outros lugares do mundo.
Uma delas é a probabilidade de desenvolver tumores. Em
geral, portadores da síndrome, homens e mulheres, têm cerca de 90% a 100% mais
chances de terem câncer do que a população em geral. No Brasil, mulheres têm
cerca de 78% de probabilidade e, em homens, ela é menor do que 50%.
No resto do mundo, mutações genéticas no TP53 também
costumam causar câncer mais cedo - em 50% dos casos, antes dos 30 anos. No caso
brasileiro, esse índice é de 30%.
"Por isso, os brasileiros com a síndrome vivem mais
tempo sem tumores e, por isso, têm mais probabilidade de ter filhos e de passar
o gene adiante", diz a geneticista Maria Isabel Achatz.
Isso pode ajudar a explicar, diz ela, por que a prevalência
da doença do Sul e no Sudeste do Brasil é tão maior do que no resto do mundo.
Estudos nas populações de Porto Alegre (RS) e de Curitiba (PR) demonstraram que
uma em cada 300 pessoas tem a síndrome - estima-se que, atualmente cerca de 300
mil indivíduos sejam afetados no Brasil.
Em outros lugares, há dados diferentes sobre prevalência da
mutação, que vão de uma a cada 5 mil pessoas até uma a cada 20 mil, o que faz
com que a síndrome seja considerada rara.
Maria Isabel Achatz, hoje no Hospital Sírio-Libanês, ainda
pesquisa a hipótese de que os portadores Li-Fraumeni no Brasil vivam mais.
"Conversando com os pacientes, percebi que alguns deles
tinham mais de 70 anos e eram extremamente ativos, praticavam esportes, andavam
de bicicleta. Eu não encontrava casos de Mal de Alzheimer, Mal de Parkinson,
nem sinais de envelhecimento precoce, pelo contrário", relata.
Se comprovada, a longevidade destes brasileiros também pode
ajudar a explicar por que aqui a mutação genética se multiplicou mais
rapidamente.
Outro estudo em desenvolvimento, segundo a geneticista,
mostra que a amamentação durante pelo menos sete meses protege mulheres com
Li-Fraumeni do câncer de mama.
Grande família
A necessidade de acompanhamento constante pelos médicos e a origem
comum da doença fez com que pacientes e especialistas decidissem organizar
encontros com as famílias brasileiras com Li-Fraumeni.
Em geral, eles ocorrem em hospitais, mas também podem ser
eventos lúdicos, como caminhadas. E já há pelo menos um grupo de Facebook para
trocar informações e marcar encontros entre familiares distantes ou entre
primos que sequer se conheciam.
"O hospital em São Paulo é minha segunda casa. Encontro
minha família de Minas lá. Tentamos marcar os exames na mesma data para nos
encontrarmos", diz a bancária Vânia Nascimento, de 41 anos, que tem
Li-Fraumeni.
Seu avô teve dez filhos, dos quais oito morreram de câncer.
Em toda a família, de mais de 50 pessoas, pelo menos 20 manifestaram a doença.
Ela foi a primeira da família que conseguiu sobreviver a um tumor.
"Cada vez que alguém morria, nos perguntávamos quem
seria o próximo. Não entendíamos o porquê de tantos casos. E até hoje, em
alguns lugares, vou fazer exames e tenho que explicar aos médicos o que é a
síndrome. Muitos não conhecem."
O encontro com outros pacientes, segundo ela, é também uma
maneira de entender o que o avanço das pesquisas sobre o tema e, principalmente
de esclarecer as dúvidas dos novos membros da família que descobrem a herança
genética.
"O pessoal mais jovem quer saber com o que está lidando
e encara numa boa, mas dos mais velhos, muitos não fazem os testes. Alguns não
querem nem falar a respeito", conta.
Para Regina Romano, conhecer a "família estendida"
da síndrome ajudou a fortalecer sua disposição de encarar a doença com
otimismo.
"A gente vê algumas pessoas que, com qualquer coisa, já
pensam: 'Eu vou morrer'. E surtam mesmo. Mas conversamos muito, e os médicos
nos explicam que a cura não existe, mas as nossas chances são muito maiores se
encontrarmos o tumor no comecinho."
"Também conheci alguns primos de outra cidade nessas
reuniões, parentes do meu pai. Nós brincamos dizendo: 'Esse maldito tropeiro
saiu por aí fazendo filhos e agora estamos aqui", ri.
Via | bbc
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