Persiste no Brasil uma "cultura do antibiótico",
em que pacientes esperam receber o remédio e em que médicos banalizam sua
prescrição. No entanto, o uso excessivo desses medicamentos deve ser contido se
quisermos frear a expansão de bactérias resistentes, que já matam 23 mil
pessoas no Brasil por ano, afirmam especialistas. Para diminuir seu uso, médicos
e pacientes precisam restringir seu uso a casos graves e não para "tratar
qualquer sintoma", argumentam.
"Existe uma tendência enorme à medicalização no Brasil.
As pessoas têm qualquer sintoma e querem um remédio. Sabemos que uma gripe vai
demorar cerca de sete dias para passar, mas as pessoas querem remédio para
encurtar isso", afirma Ana Escobar, médica do Instituto da Criança do
Hospital das Clínicas e livre docente em Pediatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
Em outubro, o Ministério da Saúde do Reino Unido recomendou
aos médicos do país que receitassem mais descanso e menos antibióticos aos
pacientes. De acordo com o órgão, cerca de um quinto dos antibióticos naquele
país são usados desnecessariamente, para doenças que seriam curadas sozinhas.
No Brasil, um dos países que mais contribuiu para o aumento
global do consumo de antibióticos na última década, ainda não há uma
recomendação oficial do tipo, mas médicos alertam para a importância de frear o
consumo desses remédios para evitar a expansão de superbactérias.
"Os números referentes à evolução da resistência
antimicrobiana são assustadores", diz Luiz Henrique Melo, médico
infectologista e consultor da empresa farmacêutica MSD, que gere programas para
a racionalização no uso de antibióticos.
"A resistência a antibióticos é um dos fenômenos que
pode levar a um colapso econômico. Parece banal, mas há um custo enorme no uso
extensivo dos antibióticos", complementa Melo.
Um estudo encomendado pelo governo britânico no ano passado
aponta que 700 mil pessoas morrem todos os anos vítimas de bactérias
resistentes no mundo e que, se nada for feito nas próximas décadas, esse número
pode saltar para 10 milhões.
Pacientes e médicos
Pacientes não devem esperar sempre pela prescrição de antibióticos,
e os médicos têm o papel de explicar ao enfermo o porquê da prescrição ou não,
afirma Melo. "Precisa munir o paciente de todos os argumentos necessários
para ele entender que não prescrever trará benefícios no curto e longo
prazo", diz o infectologista.
Se a resistência antimicrobiana não for contida, cirurgias
de alta complexidade, transplantes e quimioterapia, por exemplo, podem se
tornar impraticáveis. "A grande questão é que se você usar antibiótico de
uma forma inadequada você irá perdê-lo, porque as bactérias ficarão resistentes
com o tempo. Isso se reflete em doenças mais difíceis de curar, em mais
internação e em mais custos de saúde", afirma.
Por isso, pacientes podem contribuir para a solução do
problema ao não buscar por antibióticos sem necessidade. "São constante as
ligações no consultório de pessoas que reclamam de gripe e, porque irão viajar,
querem remédio", relata Escobar.
Do lado dos médicos, há uma "pressão" para que
receitem antibióticos, principalmente em postos de saúde, onde os profissionais
tratam emergências e não fazem um acompanhamento periódico do paciente. "O
médico nessa situação trata caso a caso, e há uma tendência exagerada à
prescrição. Se o paciente está com secreção purulenta, o médico já dá
antibiótico", diz Escobar.
A falta de estrutura adequada dos postos e hospitais, onde
nem sempre há a possibilidade de diagnóstico rápido por exames laboratoriais
para checar se há uma infecção bacteriana, também dificulta a vida dos médicos.
De acordo com um levantamento preliminar da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) de 2015, o Brasil tem praticamente um laboratório de
microbiologia para cada dez hospitais.
Esses laboratórios são essenciais para identificar as causas
de uma infecção e municiar médicos com informações sobre que remédios receitar
ao paciente. Sem tais laboratórios e exames, médicos tomam decisões no escuro e
podem errar na prescrição.
Ausência de critérios claros
Para auxiliar os profissionais de saúde no uso racional
desses remédios, seriam necessários protocolos mais claros e rígidos, afirma
Escobar. De acordo com a médica, em muitos casos, há critérios bem definidos
para o uso de antibióticos – como no tratamento de pneumonia, amigdalite e
otite –, mas seriam necessárias recomendações mais abrangentes.
"Esse respaldo precisaria vir de diretrizes universais.
Um critério, por exemplo, é a recomendação de antibiótico para amigdalite
apenas se houver infecções por bactérias estreptococos do grupo A (GAS)",
afirma. "Temos algumas diretrizes, mas não temos uma divulgação
disso."
Em maio, o governo brasileiro anunciou a elaboração de um
plano nacional de combate a bactérias resistentes a pedido da Organização
Mundial de Saúde (OMS). O governo diz que pretende educar melhor profissionais
e pacientes sobre a urgência do tema. A previsão é que o plano seja colocado em
prática a partir de 2018.
O Ministério da Saúde disse por meio de nota que o Brasil se
destaca no combate à resistência antimicrobiana na América do Sul. "Entre
os esforços [nacionais], está a experiência brasileira de obrigatoriedade e
retenção de prescrição para antibióticos em farmácias, que contribuiu para a
contenção da resistência", afirmou.
"Este é um tema prioritário para a saúde pública devido
ao crescimento no número de bactérias resistentes, com comprometimento ou, até
mesmo, impossibilidade de cura com os antibióticos existentes, de doenças como
tuberculose e malária", declarou.
Resistência antimicrobiana
Desde a descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina,
bactérias e medicamentos travam uma disputa em que um busca vencer o outro.
A resistência a antibióticos é um processo natural – as
bactérias, ao serem atacadas pelos remédios, criam mecanismos de defesa para
sobreviver. Os organismos não exterminados por medicamentos são chamados de
resistentes e passam o gene da resistência à sua prole, gerando uma nova
linhagem de bactérias resistentes.
O uso abusivo de antibióticos contribui para esse processo
e, por isso, sua utilização racional é importante para controlar a expansão de
bacterias mais fortes que os medicamentos disponíveis.
Quando o ritmo de inovação da indústria farmacêutica na área
de antibióticos era alto, a resistência não apresentava grandes desafios.
Porém, nas últimas três décadas, o número de antibióticos desenvolvidos
desacelerou, enquanto as bactérias continuaram com suas mutações naturais e
passaram à frente nessa corrida.
A redução no número de novos antibióticos aprovados nos
Estados Unidos nos últimos 30 anos ilustra essa desaceleração: enquanto na
década de 1980, 30 novos antibióticos foram aprovados pela Food and Drug
Administration (FDA), a Anvisa americana, apenas sete foram registrados entre
2000 e 2009.
"Ao longo dos anos a indústria farmacêutica
se desinteressou pelo setor de antibióticos. Os governos estão estimulando as
empresas a voltar a produzir, principalmente para cobrir esses medicamentos que
estamos perdendo", afirma Melo.
Via | BBCBRASIL
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