De câncer a Alzheimer, máquinas engolíveis, 100 vezes
menores que uma partícula de poeira, tratam doenças desafiadoras e consertam o
corpo por dentro
Fonte: Superinteressante |
Na noite de 29 de dezembro de 1959, a Sociedade Americana de
Física, ainda em clima natalino, se reuniu para assistir a Richard Feynman. O
cientista estava prestes a ganhar seu Prêmio Nobel em eletrodinâmica quântica,
mas preferiu provocar seus pares com um tema totalmente diferente. Feynman
queria que sua plateia imaginasse o potencial de “engolir um médico”. “Imaginem
um cirurgião mecânico dentro de um vaso sanguíneo, indo até o coração e dando
uma olhada nas redondezas”, Feynman disse, numa época em que a palavra
“nanotecnologia” nem existia. “Ele descobre uma válvula defeituosa, tira uma
faquinha e remove o problema.”
Quase seis décadas depois, a visão de Feynman está ganhando
contornos reais, e num lugar inusitado: à beira do Mar Vermelho. Na Arábia
Saudita, a pesquisadora Niveen Khashab se inspira no trabalho de outro vencedor
do Nobel para criar nanorrobôs que diagnosticam e tratam as doenças que
desafiam as técnicas convencionais, como câncer e Alzheimer.
A história de Khashab começa no Nobel de Química de 2016.
Ele foi dado ao seu orientador, Sir Fraser Stoddard, que conseguiu criar
conseguiu criar os menores elevadores e alavancas do mundo, manipulando átomos.
Ele chamou sua invenção de máquinas moleculares. Khashab pegou gosto por
máquinas pequenas, na escala nano (veja mais no infográfico abaixo), e começou
a explorar seu potencial na medicina.
Mas em vez de sintetizar novos remédios, seu foco é na entrega dessas
substâncias.
É que a entrega de um medicamento é mais importante do que
parece. Pense na quimioterapia, por exemplo. Ela é eficaz, mas ineficiente:
mata células doentes, só que destrói as boas também. “A droga vai para todo
canto: no estômago, traz náusea, no cabelo, traz queda. Muito pouco chega no
tumor em si”, explica a pesquisadora da Universidade Rei Abdullah de Ciência e
Tecnologia (Kaust, na sigla em inglês). Engolindo uma nanopartícula cheia de
quimioterapia, que só se abre no lugar exato do câncer, refinar muito sua pontaria
da quimioterapia, sem alterar a droga em si.
CÂNCER
Tratando tumores com (nano)GPS
Só tem um problema nessa história. Os nanorrobôs são
basicamente moléculas. Moléculas são pequenas demais para carregar uma câmera
ou algo assim. Então como é que eles “sabem” em qual parte do corpo devem agir?
A ideia, afinal, é que a liberação só aconteça no lugar certo, para evitar
danos em outras regiões.
Uma das soluções foi o magnetismo. Dá para ter componentes
metálicos (geralmente ouro) nessas moléculas: assim, elas podem ser guiadas
pelos pesquisadores de fora do corpo, com uma espécie de imã. Além disso, os
cientistas instalaram “portas” nos nanorrobôs. São elas que permitem uma
medicação entregue à la Netflix: on demand.
Essas portas, é claro, precisam ter sensores para saber
quando abrir e quanto fechar. E mesmo cegos, os nanorrobôs percebem a mudança
de ambiente. As portas podem ser acionados por mudanças de pH, por exemplo. Seu
estômago é ácido. O intestino delgado é alcalino.
Pensando em câncer de intestino, por exemplo: o pesquisador,
então, pode preparar uma porta que fica fechada no agressivo ambiente
estomacal, mas que se desfaz assim que ele chega no intestino. Remédios
convencionais, diga-se, já fazem esse truque. A diferença é que as tampas das
nanomáquinas podem responder a mais diferenças de ambiente dentro do organismo.
Já existem portas de
nanorrobôs que se abrem com mudanças de temperatura – o que é bem útil para o
câncer, já que as células em um tumor são levemente mais quentes que as saudáveis.
O avanço mais recente do laboratório da Kaust foi tornar
essas nanomáquinas responsivas a outro agente: a luz. Elas podem ser ativadas
por médicos usando tipos de luz que penetram o corpo, como a infravermelha. O
próximo passo é tornar o processo reversível: portas que abrem com a luz e
voltam a se fechar quando ela desliga.
Nem só de remédio se faz um minidoutor. As nanomáquinas
também realizam exames e podem carregar
material fluorescente. Dentro do organismo, ele se ilumina quando exposto à luz
infravermelha, o que pode revelar o tamanho preciso de um tumor.
Duplo agente
As partículas também podem ter dupla função: aplicar o
medicamento e, ao mesmo tempo, fazer um exame. Em testes com células de tumor
pancreático, os pesquisadores da Kaust colocaram duas substâncias diferentes na
mesma nanopartícula. Metade era doxorrubicina, um quimioterápico. A outra, um
corante fluorescente, o iodeto de propídio. Esse corante não consegue penetrar
em células saudáveis. Logo, todas as que aparecem “pintadas” estão com
problemas.
Em um experimento com ratos, o nanorrobô conseguiu levar as
duas cargas com segurança até o alvo. O quimioterápico conseguiu matar 70% das
células cancerosas – e o iodeto ajudou a revelar o sucesso do tratamento.
A nanoquimioterapia da Kaust está na etapa dos testes com
animais. Mas resultados promissores também foram encontrados com a nova
queridinha das terapias contra o câncer: a imunoterapia.
O menor superherói do mundo
Somos tão vulneráveis a tumores porque eles enganam o
sistema imunológico, que não consegue reconhecer que ele é uma ameaça. Esse
processo é chamado de checkpoint imunológico. Mas ele só acontece quando há
contato físico entre o tumor e a célula. As drogas de imunoterapia, então,
criam uma espécie de barreira entre o tumor e as células de defesa. Nisso, o
corpo reconhece o câncer e solta os cachorros do sistema imunológico para cima
da doença.
Mas, tal qual a quimioterapia, o tratamento não age só no
lugar desejado. Em até 30% dos casos, o sistema imunológico entra em surto e
reage a tudo: até aos próprios órgãos do corpo. É comum atacarem o pâncreas, o
que causa um quadro similar a diabetes tipo 1 e, nos casos mais graves, parada
cardíaca. Cinco pacientes (cujo câncer estava em remissão) morreram desse jeito
no ano passado.
Nessa cena de tragédia, entra o menor super-herói do mundo.
Os primeiros testes com ratos terminaram há alguns meses. As nanopartículas,
carregadas com medicamentos de imunoterapia, controlaram a liberação dos
remédios na região específica do câncer. “Isso impediu que o sistema
enlouquecesse”, conclui a professora Khashab.
ALZHEIMER
Com a faca na mão
Vale lembrar que no início do texto, o cientista Richard
Feynman queria mais que um comprimido inteligente. Ele propunha um pequeno
cirurgião. E é exatamente assim que as nanomáquinas planejam tratar o
Alzheimer.
A doença é causada por proteínas que se acumulam
descontroladamente, danificando células cerebrais – pelo menos, essa é a teoria
mais aceita. Essas proteínas são chamadas de beta amiloides. A estratégia das
nanomáquinas é ao estilo Rambo: ela chega destruindo essas proteínas acumuladas
e desafogando o cérebro.
O problema é chegar no cérebro. É que esse órgão é muito
esperto: ele se isola de todas as porcarias que colocamos no corpo e que vão
parar no sangue. A barreira hematoencefálica
filtra tudo que sobe da corrente sanguínea em direção à massa cinzenta.
Poucas substâncias têm passagem liberada. Mas uma delas é o colesterol.
A equipe de Khashab, então, usou um colesterol fake e fez as
nanomáquinas anti-Alzheimer com ele. Como no caso do câncer, elas carregam
corante fluorescente. Chegando nos emaranhados do Alzheimer, fazem tudo
brilhar. Lá de fora do corpo, os médicos acendem a luz infravermelha. Veem onde
está o problema e – BOOM. A segunda carga da nanomáquina é um pedacinho de
ouro. A luz infravermelha explode o núcleo de ouro, esquenta a temperatura do
local e o calor destróid as proteínas que causam o Alzheimer.
DIA A DIA
Antibióticos em equilíbrio
Mas não precisamos ir tão longe quanto e o Alzheimer o
câncer: atire a primeira pedra quem nunca esqueceu de tomar antibiótico na hora
certa. Isso não só atrapalha na recuperação como facilita o surgimento das
famosas superbactérias.
Seu antibiótico é dividido em todas essas doses porque
qualquer tratamento funciona melhor com estabilidade contínua. Em um mundo
ideal, o remédio chegaria ao sangue na concentração certa e manteria esse nível
até o fim do tratamento. Mas seu corpo está fica, o tempo todo, tentando se
livrando de substâncias estranhas. A gambiarra dos médicos, então, é dividir o
remédio em várias doses, de modo que a quantidade de droga agindo no corpo seja
a mesma o tempo todo.
É esse delicado equilíbrio que você estraga ao pular uma
dose de remédio. Já com um sistema inteligente para a entrega das drogas, a
coisa muda de figura. Em vez de ter de tomar os antibióticos na hora certa,
bastaria engolir um nanorrobô cheio de antibiótico, e ele vai despejando a substância
nos intervalos exatos.
Alergia e pressão alta
Esse tipo de tecnologia também pode permitir adaptações
malucas nos medicamentos: já reparou como sua alergia piora à noite?
Hipertensão, artrite, angina, AVCs e até tumores têm picos de atividade dependendo
da hora do dia. Adaptar as nanomáquinas para responder não apenas à luz, mas
também a estímulos do seu relógio biológico, pode abrir espaço para a
cronoterapia, que visa tratar doenças de acordo com a “hora do rush” de cada
uma.
O problema do nanolixo
Uma vez que o nanorrobô cumpre sua missão, surge um outro
problema: o que fazer com ele depois? Como descartar o bichinho? Um dos grandes
riscos é que o corpo encontre dificuldade na hora de metabolizá-los – ou seja,
de quebrar as moléculas deles em partes bem pequenas, que possam ser eliminadas
com facilidade. Sem isso, as maquininhas podem se acumular no fígado ou nos
rins, prejudicando o organismo todo.
Para evitar isso, os cientistas têm desenvolvido nanorrobôs
biodegradáveis. O segredo, aí, é construí-los à imagem e semelhança das
moléculas mais nobres do universo conhecido: as de DNA.
O DNA não compartilha elétrons entre suas moléculas. Isso
tornaria a ligação entre elas rígida demais. No lugar, elas têm interações mais
fracas, como pontes de hidrogênio. São fáceis de montar e desmontar. Graças a
essa característica, aliás, o DNA forma estruturas complexas.
As nanomáquinas estão sendo projetadas para ter a mesma
versatilidade: montam-se automaticamente, como peças de um quebra-cabeça, e
também se desintegram sozinhas depois de um tempo, de modo que não se acumulem
no corpo.
Cirurgia, medicação, diagnóstico. Enfim: é difícil prever
quais dessas aplicações terão o melhor potencial em testes com humanos. Para a
nanoquimioterapia, Niveen Khashab é otimista. Sua previsão é que, entre sete e
dez anos, seu sistema comece a ser usado em formulações médicas.
Mais do que oferecer soluções imediatas, porém, as
nanomáquinas apontam uma tendência. Como disse Feynman em 1959: “Há muito
espaço para a ciência lá embaixo [na escala molecular]”. Hoje, esse espaço já
conta com a elite da ciência, e promete para a medicina um futuro grandioso,
ainda que cada vez mais diminuto.
Fonte: superinteressante
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