Antes da vacina, a raiva era o mais assustador dos males - e
pode ter dado origem a contos de vampiros, lobisomens e outros seres
aterrorizantes
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(iStock | ivkuzmin) |
Certo dia, o sujeito acorda se sentindo estranho. Tem um
pouco de febre, uma dor de cabeça, talvez uma falta de apetite. Pode ser
qualquer coisa. Passados uns dias, uma súbita ansiedade toma o doente. Dores
pelo corpo e convulsões. A febre aumenta, e ele se torna agressivo. É quando
aparece o sintoma inconfundível: um pavor incompreensível de água. É a
hidrofobia. Não pode nem ficar perto de um copo d´água que o terror o domina. A
essa altura, a garganta sofre espasmos e a pessoa emite gritos que mais parecem
ganidos e uivos. Não há mais dúvidas, é a raiva. Quando os sintomas chegam a
esse ponto, nada mais pode ser feito: em poucos dias, a morte – dolorosa,
agonizante – é certa, em quase 100% dos casos.
Se a descrição acima parece história de terror, é porque ela
realmente é. A raiva tem sintomas tão assustadores porque mata de forma
diferente da maioria das doenças neurológicas, que costumam destruir os
neurônios. O lyssavirus (que vem do grego lykos: lobo) atinge os neurotransmissores,
a comunicação do sistema nervoso. Depois da contaminação, caminha cerca de 1 cm
por dia da ferida em direção ao cérebro e lá, por meio de um mecanismo chamado
excitotoxicidade, faz com que as células nervosas gastem toda a sua energia e
morram de exaustão. Aos poucos, as funções automáticas param de funcionar, e a
morte acontece por parada cardíaca ou respiratória. História de terror das
piores.
Por muitos séculos, a raiva foi a única doença visivelmente
transmitida por animais – sempre mamíferos (principalmente cachorros e
morcegos) e sempre por mordidas. “O vírus da raiva evoluiu para viver no
cachorro, e o cachorro evoluiu para coexistir com o homem. Isso fez com que a
doen-ça se espalhasse”, escrevem Bill Wasik e Monica Murphy em Rabid: A Cultural
History of the World’s Most Diabolical Virus (“Raiva: uma história cultural do
vírus mais diabólico do mundo”). Hoje, a raiva está controlada: são 55 mil
casos em humanos ao ano, de acordo com a OMS, quase todos na Ásia e África.
Mesmo no Brasil, a doença é raríssima: no ano passado, foram apenas cinco
casos. Tudo graças à vacina. “Hoje o principal risco é o contato com animais
silvestres, que aumentou por causa do ecoturismo”, diz Jarbas Barbosa,
secretário nacional de Vigilância em Saúde.
Os mistérios sobrenaturais que envolviam a doença só foram
dissipados quando uma celebridade do mundo científico voltou suas atenções para
ela: Louis Pasteur. Ele pesquisou a raiva justamente porque se tratava da “mais
assustadora e mortal das doenças”. Sua vacina consistia em 21 dolorosas
injeções na barriga, que continham cada vez uma versão mais enfraquecida do
lyssavirus. O método de Pasteur foi aperfeiçoado e é usado até hoje: atualmente
bastam quatro vacinas no braço. Foi essa simples solução que praticamente eliminou
a doença.
Por isso, quando o pediatra Rodney Willoughby recebeu uma
ligação em seu consultório em Milwaukee, nos EUA, informando-o de que iria
receber uma paciente com os sintomas de raiva, ele não acreditou. Afinal,
apesar de seus mais de 20 anos de experiência, só conhecia casos da doença
pelos livros. Mas os exames realizados na paciente, uma adolescente de 15 anos
chamada Jeanna Giese, confirmaram: era mesmo raiva.
Quatro semanas antes, Jeanna estava na igreja de sua
comunidade, quando um morcego invadiu a capela e a mordeu. Ela sequer sentiu.
Quando os sintomas apareceram, já era tarde. A vacina é eficiente em quase
todos os casos, mas apenas se tomada nos primeiros dias após a infecção. Se o
vírus da raiva atingir o cérebro antes, o índice de fatalidade é praticamente
100%. O dr. Willoughby sabia que o procedimento normal nesses casos era sedar o
paciente e esperar a morte. Mas ele não se conformou a isso.
O médico também sabia que o corpo reage naturalmente ao
vírus da raiva. O problema é que ele engana o nosso sistema imunológico. A
maioria das doenças avança pela corrente sanguínea: é o caminho mais rápido, e
também mais protegido pelo sistema imunológico. Mas o lyssavirus se espalha
pelos neurotransmissores e, assim, chega ao cérebro antes das nossas defesas
naturais. Foi então que o dr. Willoughby teve uma ideia. Vencer o vírus da
raiva pela paciência: era preciso dar ao organismo tempo para ele organizar
suas defesas. O plano nunca havia sido testado, mas a ideia consistia em
induzir a menina ao coma, baixando as funções corporais e cerebrais ao mínimo
possível. Assim, seu corpo poderia se preocupar com uma só coisa: gerar
defesas. A equipe usou quetamina, um poderoso anestésico e alucinógeno, com a
retrovirais e sedativos barbitúricos.
Para surpresa de todos, a estratégia deu certo. Quando saiu
do hospital, no dia 1º de janeiro de 2005, Jeanna estava completamente curada.
A notícia do primeiro registro de cura da raiva se espalhou pelo mundo. A
equipe responsável elaborou um roteiro de atendimento que foi batizado de
protocolo de Milwaukee. Desde então, cinco pessoas no mundo já foram curadas
com procedimentos semelhantes – uma delas no Brasil.
O caso brasileiro aconteceu em 2008, quando o adolescente
Marciano Menezes da Silva foi diagnosticado depois de ser mordido por um
morcego na cidade de Floresta, no sertão de Pernambuco. O rapaz foi levado ao
Recife e os médicos notaram os sintomas já desenvolvidos. “Tínhamos contato com
o dr. Rodney, que fala português e é casado com uma pernambucana, e decidimos
aplicar o protocolo de Milwaukee. Era a nossa melhor chance”, explica o médico
Vicente Vaz, infectologista que integrou a equipe que cuidou de Marciano. De
fato, foi. O rapaz sobreviveu e se tornou o terceiro caso documentado de cura.
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(iStock | Wavetop) |
Sobre vampiros, zumbis e lobisomens
Um ser violento, que vive na escuridão. Ao menor sinal de
perigo, ele se torna agressivo: mostra os caninos pontiagudos e espuma pela
boca. É hipersexualizado, como um animal no cio. Ataca quem estiver por perto –
e quem tiver o azar de ser mordido em pouco tempo também se tornará um deles. É
um vampiro? É um lobisomem? É um ser humano com raiva? Difícil separar as
histórias. Tanto que, em 1998, o médico espanhol Juan Gómez Alonso chamou a
atenção da comunidade científica ao publicar Raiva: uma possível explicação
para a lenda dos vampiros. Ele defende que os vampiros – um dos mitos mais
marcantes da cultura pop há 200 anos – são, na verdade, criações literárias
baseadas em pessoas infectadas com raiva.
A relação mais óbvia é o fato de que tanto a raiva quanto o
vampirismo passam de organismo a organismo por uma mordida. Mas o médico
espanhol também cita outras características similares: o intenso desejo sexual
dos vampiros e das pessoas infectadas (há relatos de contaminados que ejaculam
até 30 vezes ao dia) e a violência.
Além dos vampiros, o cientista espanhol defende que os
lobisomens também surgiram da doença. As mordidas, os dentes à mostra e a
transformação animalesca seriam os indícios. Bill Wasik e Monica Murphy
explicam: “Observe os filmes de terror. Os vilões surgem ofegantes, quase
sempre mordendo suas vítimas. Quase sempre há uma forma de contágio – algo
maligno que passa de vítima a vítima, por meio de uma mordida, beijo ou
lambida”. Para eles, nada além de roteiros inspirados na raiva. E há indícios
de que a nova febre dos zumbis também seja fruto do mal. No filme Extermínio,
de 2002, a humanidade é atacada por uma doença de nome “fúria”. O diretor,
Daniel Boyle, admitiu ter se inspirado na raiva para criar sua versão de
zumbis, muito mais ágeis e furiosos do que os clássicos e molengas zumbis dos
anos 60, 70 e 80.
Para Wasik e Murphy, esses personagens não são apenas uma
metáfora da raiva, mas um reflexo da profunda in-fluência que a doença
estabeleceu no imaginário das pessoas. Por mais que esteja controlada, tudo
indica que a relação da humanidade com um de seus mais antigos medos ainda está
longe do fim.
A morte
A raiva mata pela exaustão. Excita tanto o cérebro que ele
fica sem energia para as funções vitais.
Os urros
Garganta e cordas vocais sofrem espasmos e o contaminado
solta ganidos.
A baba
Assim como cachorros, humanos com raiva também espumam pela
boca. Efeito da hidrofobia, que se manifesta como um medo paralisante de
engolir qualquer líquido.
A agressão
Convulsões são comuns. Há relatos de doentes que atacaram
outras pessoas.
A libido
Com o cérebro estimulado, é comum sentir excitação
constante.
O caminho
Quando entra no organismo de uma pessoa, o vírus se desloca
por meio do sistema nervoso, avançando entre um e dois centímetros por dia,
navegando pelas linhas de transmissão de impulsos nervosos.
O contágio
Quarenta dias podem se passar da contaminação aos primeiros
sintomas: sinal de que é tarde demais.
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