As doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica que afetam milhões de pessoas no mundo e no Brasil
Cerca de um bilhão de pessoas no mundo – um sexto de todos
os humanos no planeta – são afetados pelas chamadas "doenças
negligenciadas": enfermidades que a indústria farmacêutica não tem
interesse em pesquisar, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
O motivo? "Elas estão relacionadas à pobreza, não têm
muito interesse para o mercado porque não dão um retorno lucrativo",
explica Sinval Brandão, pesquisador da Fiocruz e presidente da Sociedade
Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).
A OMS classifica 17 patologias como doenças tropicais
negligenciadas. Elas são diferentes uma da outra, mas têm em comum o fato de
atingirem principalmente pessoas de baixa renda ou em condição de miséria, em
lugares pobres e em países em desenvolvimento.
Algumas das patologias são conhecidas há séculos, explica
Ethel Maciel, epidemiologista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Várias delas você já deve ter estudado na escola: teníase,
lepra, doença de Chagas, esquistossomose, doença do sono, tracoma, oncocercose,
filariose linfática, entre outras.
Para muitos que vivem em grandes centros urbanos no Primeiro
Mundo, há a impressão (errônea) de que são doenças do passado, que já foram
erradicadas. Afinal, em extensas partes do mundo nas quais as condições de vida
e de higiene melhoraram, elas não são mais um problema.
Mas elas continuam bem presentes, concentradas em regiões
pobres do mundo, em áreas rurais remotas, em favelas e áreas urbanas sem
saneamento - inclusive (e em grande quantidade) no Brasil.
"O Brasil foi responsável por 70% das mortes no mundo
por doença de Chagas em 2017; contribuiu com 93% dos novos casos de hanseníase
e 96% dos casos de leishmaniose visceral do continente, só para citar alguns
exemplos", diz Jardel Katz, gerente de pesquisa e desenvolvimento da DNDI
(Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas).
Se tanta gente é afetada, por que não se fala mais dessas
doenças? Elas são silenciosas, diz a OMS, "porque as pessoas afetadas ou
em risco tem pouca voz política".
"Às vezes em que chamam a atenção é quando saem do
circuito de baixa renda e locais pobres em que normalmente são endêmicas e
atingem a classe média, bairros ricos", diz Ethel Maciel. "É o caso
da dengue, por exemplo."
Algumas entidades consideram um grupo maior de enfermidades
na lista das negligenciadas. O projeto G-Finder cita 33 enfermidades em seu
relatório anual sobre doenças negligenciadas, incluindo tuberculose e malária
na lista. O projeto é organizado pelo centro de estudos Policy Cures Research,
dedicado a buscar formas de promover avanços na saúde da população mais pobre
no mundo, e patrocinado pela fundação Bill & Melinda Gates
Segundo Jardel Katz, da DNDI, todas as 33 doenças
consideradas pelo G-Finder estão presentes no Brasil, em maior ou menor medida
dependendo da região.
O Ministério da Saúde definiu em 2008 sete doenças
negligenciadas como prioridade no país, com base em dados sobre seu impacto no
Brasil: dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária,
esquistossomose e tuberculose.
O problema é que, justamente em uma área tão dependente de
investimento público, o gasto governamental com pesquisa e desenvolvimento vem
caindo. Segundo um relatório da G-Finder publicado recentemente, o governo fez
um corte de 42% em verbas para pesquisa em doenças negligenciadas entre 2016 e
2017.
Tratamento antigo
A falta de interesse da indústria farmacêutica faz com que
essas doenças tenham tratamentos muito antigos, com limitações, baixa eficácia
e reações adversas, explica Jadel Katz.
Um dos principais tratamentos para a leishmaniose, por
exemplo, é feito com uma substância chamada antimoniato, que mata o protozoário
causador da infecção.
"É um tratamento que tem mais de cem anos e é muito
tóxico. A pessoa entra no tratamento e pode ter problema cardíaco, renal",
explica o epidemiologista Guilherme Werneck, doutor em saúde pública por
Harvard e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
"Há um outro remédio, a Anfotericina B lipossomal, mas
que é muito cara e também é bastante tóxica", diz Werneck.
Ethel Maciel explica que a dificuldade não é só para
tratamentos, mas também em prevenção e diagnóstico.
"No combate à dengue, a forma de se combater o vetor (o
mosquito transmissor do vírus) é a mesma desde os anos 1980 na maior parte do
país", diz ela. No caso da dengue, hoje ainda não há remédio específico e
apenas uma vacina, que tem baixa eficácia.
Pesquisa e desenvolvimento
"Para essas doenças é o setor público quem financia
mais pesquisas, e isso gera descobertas importantes. Mas para questões de
inovação e tratamento, a parceria com a iniciativa privada é essencial",
diz Werneck.
Isso porque, explica Jadel Katz, quando se fala de avanços
na área da saúde em geral, normalmente as universidades e instituições públicas
fazem a maior parte das chamadas pesquisas em ciência básica (estudando os
agentes causadores e como combatê-los).
O estudo sobre a criação e aplicação de remédios propriamente
ditos acaba ficando com a iniciativa privada, que tem mais dinheiro e estrutura
- além do interesse econômico nisso. "Eles cuidam mais dessa etapa onde há
as questões regulatórias, os testes clínicos, que exigem participação de
pacientes, dinheiro", diz Katz.
Além disso, há uma terceira etapa, de fabricação, que exige
infraestrutura de produção.
No caso das doenças negligenciadas, no entanto, praticamente
toda a pesquisa e desenvolvimento é feita pelo setor público ou por
instituições sem fins lucrativos, principalmente estrangeiras.
"É uma área extremamente dependente de investimento
público", explica Sinval Brandão.
Mas mesmo que o setor público e a academia invistam em
pesquisa, o avanço é muito mais difícil sem a infraestrutura da indústria, principalmente
na criação de tratamentos e na fabricação de remédios.
No Brasil, instituições públicas como o laboratório de
remédios Farmanguinhos, da Fiocruz, fazem esse trabalho, mas elas ainda são
poucas e não conseguem ter um nível de produção comparável ao da iniciativa
privada.
"Já que não é um business puro, é preciso ter
alternativas de desenvolvimento", diz Katz. "Trazer parceiros para
conversar, tanto na esfera governamental e de ciência básica, quanto pensando
em ter um parceiro industrial. É preciso ter diferentes parceiros, que dominam
diferentes estágios de produção."
Queda no investimento
No Brasil, há uma grande preocupação com a queda de
investimentos do governo nessas doenças.
Segundo o relatório da G-Finder sobre investimento em
pesquisa e desenvolvimento (P&D) em doenças negligenciadas, o investimento
no Brasil caiu muito nos últimos anos - apesar de ter crescido no mundo, onde
atingiu seu maior patamar em 2017.
De acordo com a pesquisa, publicada na semana passada, o
total de investimento na área no Brasil foi de R$ 29 milhões em 2017, 42% a
menos do que em 2016, o que tirou o Brasil da lista de doze maiores
financiadores globais.
"Sentimos diretamente essa redução nos cortes
orçamentários", afirma Sinval Brandão, da SBMT. "A redução de
investimento, que já se vinha sentindo nos últimos anos, em 2017 e 2018 foi
muito maior, interrompendo projetos e fechando laboratórios."
De acordo com o relatório, entre 2016 e 2017 a diminuição no
financiamento público foi resultado do teto de gastos estabelecido pelo
governo, que causou cortes de duas agências financiadoras: o Banco Nacional do
Desenvolvimento Social (BNDES), que teve uma redução de R$ 15 milhões no
investimento; e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp), que cortou R$ 14 milhões.
"Essa redução geral é extremamente significativa em uma
área que tem tão pouco interesse do setor privado", afirma Brandão.
Isso afetou praticamente todas as patologias negligenciadas
consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde no Brasil.
O investimento em pesquisas sobre malária caiu 15%. Para
leishmaniose, a redução de verbas foi de 63%. Para tuberculose, o corte foi de
45%.
Para doença de Chagas - problema para o qual o Brasil foi,
durante cinco anos, o segundo maior financiador de pesquisas - o corte foi de
74%.
Só duas doenças tiveram aumento no investimento. Uma delas
foi a dengue, que cresceu 41%.
A outra foi a esquistossomose, que teve um aumento
considerável, de R$ 500 mil em 2016 para R$ 2,8 milhões em 2017 - aumento de
460%. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 1,5 milhões de pessoas viverem em
áreas sob risco de contrair a doença.
O que diz o governo
Quando aprovou o teto de gastos, em 2016, o governo disse
reiteradamente que o limite no orçamento não afetaria as áreas de saúde e
educação – vários defensores da medida fizeram essa afirmação, incluindo os
ministros Henrique Meirelles (que estava no Ministério da Fazenda) e Dyogo
Oliveira (Planejamento).
Questionado pela BBC News Brasil, o Ministério do
Planejamento afirmou que quem deveria se pronunciar sobre o assunto é o
Ministério da Saúde. "O dinheiro sai do orçamento para o órgão. Ele é que
decide onde e como gastar", disse a pasta, em nota.
Já o Ministério da Saúde diz que seu Departamento de Ciência
e Tecnologia (Decit) não fez cortes em doenças negligenciadas e que mantém
pesquisas por meios de parcerias com órgãos governamentais como CNPq e Finep,
mas que não responde por cortes feitos por agências financiadoras.
O ministério também afirma que o Brasil tem "alta carga
de doenças não-transmissíveis, além das doenças transmissíveis e
negligenciadas."
"Isto faz com que os recursos para pesquisa sejam
destinados para diversas frentes de conhecimento. Em relação especificamente às
doenças negligenciadas, podem ocorrer destinações de recursos maiores ou
menores para determinadas doenças a partir de necessidades específicas. Por
exemplo, em 2016 e 2017, com a emergência em Zika, houve investimento maior em
pesquisas relacionadas ao mosquito Aedes aegypti."
A pasta destaca dados do relatório G-Finder que apontam o
Decit como com um dos maiores financiadores de pesquisas relacionadas a
controle vetorial do mosquito em 2017. Diz ainda que outras áreas do Ministério
da Saúde e do Governo Federal "financiam pesquisas e não estão
contemplados no relatório", mas não especificou quais, para quais doenças
e nem quanto foi investido.
No entanto, o ministério destacou uma lista de ações de
combate às doenças negligênciadas que não envolvem pesquisa e desenvolvimento
(e por isso não estão no relatório G-Finder), como "repasses extras anuais
superiores a R$ 10 milhões para intensificação das ações de controle da malária
nos Estados com maior registro de casos".
"Quanto a hanseníase, o Ministério da Saúde realiza
anualmente campanha para alertar a população sobre sinais da doenças, estimular
a procura pelos serviços de saúde e mobilizar profissionais de saúde na busca
ativa de casos, favorecendo assim o diagnóstico precoce, o tratamento oportuno
e a prevenção das incapacidades", diz a pasta, em nota.
O órgão também destacou o Plano Nacional pelo Fim da
Tuberculose como Problema de Saúde Pública, lançado no ano passado, e a
"atuação em conjunto com as secretarias estaduais e municipais de saúde no
controle das leishmanioses", além do diagnóstico e tratamento gratuito
oferecido no SUS para as doenças
Fonte | BBC
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