Pergunte a Daniel Mills, professor de Veterinária
comportamental na Universidade de Lincoln (Reino Unido). Em um estudo recente,
Mills e sua colega Alice Potter comprovaram de modo científico o que já se
sabia na prática: gatos são mais autônomos e solitários do que os cachorros.
Apesar de envolver a já famosa reputação dos gatos, executar
essa pesquisa foi mais difícil do que poderia parecer.
"Eles são complicados se você quer que façam algo de
uma certa maneira", diz Mills. "Eles tendem a fazer o que
querem."
Donos de gatos do mundo inteiro irão concordar. Mas por que
exatamente os gatos são tão relutantes em cooperar, seja entre si ou com
humanos? Ou, perguntando de outra forma, por que tantos outros animais -
domésticos ou selvagens - têm espírito de equipe?
A vida em grupo é comum na natureza. Pássaros formam bandos
e peixes, cardumes. Predadores frequentemente caçam juntos. Até mesmo o leão,
parente do gato doméstico, vive em grupo.
Para as espécies que são caçadas por outras, obviamente há
uma estratégia de maior segurança em um bando. "Chama-se efeito de
diluição", diz o biólogo Craig Packer, da Universidade de Minnesota (EUA).
"Um predador só consegue matar um, e se há cem da mesma
espécie isso reduz as chances de cada um deles ser pego para 1%. Mas se você
estiver sozinho você será escolhido 100% das vezes."
Animais em bando também se beneficiam do efeito "muitos
olhos atentos": quanto maior o grupo, é mais provável que alguém perceba
um predador se aproximando. "E quanto mais cedo você detectar o predador,
mais tempo tem para iniciar a fuga", diz Jens Krause, da Universidade de
Humboldt em Berlim, Alemanha.
Essa vigilância coletiva traz outras vantagens. Cada um pode
gastar mais tempo e energia procurando por comida. E não se trata apenas de
evitar predadores. Animais que socializam em grupos não precisam perambular em
busca de companheiros, o que é um problema para espécies solitárias que vivem
em territórios amplos.
Uma vez que se reproduzem, muitos animais que vivem em grupo
adotam a máxima "é necessária uma aldeia inteira para criar uma
criança", com os adultos trabalhando em equipe para proteger ou alimentar
os mais novos.
Em várias espécies de pássaros, como a zaragateiro-árabe de
Israel, os pequenos permanecem em grupos de familiares até que eles estejam
prontos para procriar. Eles dançam em grupo, tomam banho juntos e até trocam
presentes entre si.
Princípio 'Volta da França'
Viver em grupo também poupa energia. Os pássaros que migram
juntos ou os peixes que vivem em cardumes se movimentam com mais eficiência do
que os mais solitários.
É o mesmo princípio que os ciclistas da Volta da França
utilizam quando formam um pelotão. "Os que estão mais atrás não precisam
investir tanta energia para atingir a mesma velocidade de locomoção", diz
Krause.
Como pinguins e morcegos podem atestar, a vida pode ser mais
calorosa quando se vive cercado de amigos.
Com tantos benefícios, pode parecer surpreendente que
qualquer animal rejeite seus companheiros. Mas, como os gatos domésticos
demonstram, a vida em grupo não é para todos. Para alguns animais, os
benefícios da coletividade não compensam ter que dividir comida.
"Chega a um ponto em que se alimentar com outros
indivíduos com grande proximidade reduz a sua quantidade de alimento", diz
John Fryxell, biólogo da Universidade de Guelph, no Canadá.
Um fator-chave para essa decisão é ter alimentação
suficiente, o que depende de quanta comida cada animal precisa. E os gatos têm
um gosto caro. Por exemplo, um leopardo come cerca de 23 kg de carne em poucos
dias. Para gatos selvagens, a competição por alimentos é cruel, e por isso
leopardos vivem e caçam sozinhos.
Há uma exceção à regra de felinos solitários: leões. Para
eles, é uma questão territorial, diz Packer, que passou 50 anos de sua vida
estudando os leões africanos. Alguns locais da savana têm emboscadas perfeitas
para a caça, então controlar esse lugar resulta em uma vantagem significativa
em termos de sobrevivência.
"Isso impõe sociabilidade porque você precisa de
equipes para dominar seu bairro local e excluir outros times. Assim, o maior
time vence", diz Packer.
O que torna essa vida em grupo possível é que a presa de um
único leão - um gnu ou uma zebra - é grande o bastante para alimentar várias
fêmeas de uma vez só. "O tamanho da caça permite que eles vivam em grupos
mas é a geografia o que realmente os leva a viver em grupos", diz Packer.
Não é a mesma situação dos gatos domésticos, já que eles
caçam animais pequenos. "Eles vão comê-lo inteiro", diz Packer.
"Não há comida o suficiente para dividir."
Domesticação
Essa lógica econômica está tão integrada ao comportamento
dos gatos que parece improvável que até mesmo a domesticação tenha alterado
essa preferência fundamental por solidão.
Isso é duplamente verdade quando você leva em consideração o
fato de que os humanos não domesticaram os gatos. Em vez disso, em seu próprio
estilo, os gatos domesticaram a si mesmos.
Todos os gatos domésticos são descendentes dos gatos
selvagens do Oriente Médio (Felis silvestris), o "gato-do-mato". Os
humanos não coagiram esses gatos a deixar as florestas: eles mesmos se
convidaram a entrar nos alojamentos de humanos, onde havia uma quantidade
ilimitada de ratos ao seu dispor.
A invasão a essa festa de ratos foi o início de uma relação
simbiótica. Os gatos adoraram a abundância de ratos nos alojamentos e depósitos
e os humanos gostaram do controle grátis da infestação de ratos.
Os gatos domésticos não são completamente antissociais. Mas
sua sociabilidade - em relação a outro humano ou entre eles - é determinada
inteiramente por eles, em seus próprios termos.
"Eles mantêm um nível alto de independência e se
aproximam de nós apenas quando querem", diz Dennis Turner, especialista em
comportamento animal no Instituto de Etologia Aplicada e Psicologia Animal em
Horgen, Suíça.
"Os gatos desenvolveram muitos mecanismos para se
manter à parte, o que não os conduz para a vida em bando", diz Mills. Os
gatos marcam seu território para evitar encontros constrangedores entre si. Se
eles acidentalmente se toparem, os pêlos são levantados e as garras saltam para
fora.
Em determinadas circunstâncias pode parecer que os gatos
domésticos adotaram a vida coletiva, como quando um grupo vive junto em um
galpão. Mas não se engane. "Eles têm laços muito frouxos e não têm uma
identidade real como grupo", diz Fryxell. "Eles só gostam de ter um
lugar comum para deixar seus filhotes."
Aliás, mesmo diante de um grande perigo, quando eles se unem
para se defender, é pouco provável que os gatos colaborem entre si. "Não é
que algo que eles tipicamente façam quando se sentem ameaçados", diz
Monique Udell, bióloga da Universidade de Oregon (EUA).
Os gatos simplesmente não acreditam na força de um grupo.
Tudo isso ajuda a explicar por que os gatos têm a reputação de dominação
impossível. Ainda assim, há evidências de que o desprezo dos gatos pela vida em
grupo possa ser uma fraqueza.
Caixa-preta da menta felina
Um estudo publicado em 2014 no periódico científico Journal
of Comparative Psychology investigou os traços de personalidade dos gatos
domésticos. A conclusão foi que manter-se solitário e desinteressado torna os
gatos neuróticos, impulsivos e resistentes a ordens.
Curiosamente, no entanto, os gatos domésticos parecem
capazes de cooperar um pouco mais que seus parentes selvagens. Quando os
pesquisadores compararam o gato doméstico a quatro selvagens - o gato selvagem
escocês, o leopardo-nebuloso, o leopardo-da-neve e os leões africanos -, os
gatos domésticos foram os que mais se aproximaram dos leões em termos de
personalidade.
É preciso dizer que os gatos domésticos trilharam um longo
caminho a partir de seus ancestrais até aqui em termos de tolerar a companhia
um do outro. Mesmo que gatos morando em galpões formem laços frouxos, eles
ainda demonstram um nível impressionante de aceitação da presença do outro
nesses espaços confinados.
Em Roma, cerca de 200 gatos vivem lado a lado no Coliseu,
enquanto na ilha de Aoshima, no Japão, o número de gatos supera o de pessoas em
uma proporção de seis para um. Essas colônias podem não ter tanta cooperação,
mas estão bem avançadas em relação ao passado solitário dos gatos domésticos.
Enquanto isso, pode ser mais fácil para pesquisadores
encontrar os gatos "no meio do caminho" ao realizar seus
experimentos, fazendo certas concessões.
Quando Udell fez suas primeiras experiências com gatos,
enfrentou uma série de dificuldades ao tentar motivar suas cobaias a participar
de certa atividade. Ela já havia trabalhado com cachorros, que estariam
dispostos a fazer qualquer coisa em troca de um petisco.
Os gatos, contudo, eram mais exigentes. Com o passar do
tempo, Udell percebeu que teria mais sucesso se desse aos gatos a opção de
escolher sua recompensa.
"Acho que parte do desafio é o quanto sabemos sobre os
gatos", diz. Se os cientistas começarem a entrar na caixa-preta que é a
mente felina, a domesticação à força pode ser substituída por uma coerção mais
astuta.
"Muito do comportamento animal - incluindo uma
afinidade ou resistência à domesticação - é profundamente ligado ao circuito
neural. Portanto, parece pouco possível deixar para trás anos de seleção
natural", diz Fryxell.
"Mas quem sabe? Obviamente, leões conseguiram essa
proeza, então deve ser possível que mutações ocorram", diz ele. "E se
eles conseguiram fazer isso, talvez domesticar gatos não seja uma ideia tão
maluca, afinal de contas."
Via bbcbrasil
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