O
rio São Francisco está secando, haverá cada vez menos água em Brasília e a
cidade de São Paulo terá de aprender a conviver com racionamentos.
Plantas do cerrado atuam como uma imensa esponja, recarregando aquíferos que abastecem rios e reservatórios |
O
alerta é do arqueólogo e antropólogo baiano Altair Sales Barbosa, que há quase
50 anos estuda o papel do Cerrado na regulação de grandes rios da América do
Sul.
Ele
diz à BBC Brasil que a rápida destruição do bioma está golpeando um dos pilares
do sistema: a gigantesca rede de raízes que atua como uma esponja, ajudando a
recarregar os aquíferos que levam água a torneiras de todas as regiões do
Brasil.
Formado
em antropologia pela Universidade Católica do Chile, doutor em arqueologia
pré-histórica pelo Museu de História Natural de Washington e professor
aposentado da PUC-Goiás, Barbosa conta que a água que alimenta o São Francisco
e as represas de São Paulo e Brasília vem de três grandes depósitos
subterrâneos no Cerrado: os aquíferos Guarani, Urucuia e Bambuí.
Os
aquíferos são reabastecidos pela chuva, mas dependem da vegetação para que a
água chegue lá embaixo.
Barbosa
afirma que muitas plantas do Cerrado têm só um terço de sua estrutura acima da
superfície e, para sobreviver num ambiente com solo oligotrófico (pobre em
nutrientes), desenvolveram raízes profundas e bastante ramificadas.
"Se
você arrancar uma dessas plantas, vai contar milhares ou até milhões de raízes,
e quando cortar uma raiz e levá-la ao microscópio, verá inúmeras outras
minirraízes que se entrelaçam com as de outras plantas, formando uma espécie de
esponja."
Esse
complexo sistema radicular retém água e alimenta as plantas na estação seca.
Graças a ele, as árvores do Cerrado não perdem as folhas mesmo nem mesmo no
auge da estiagem - diferentemente do que ocorre entre as espécies do Semiárido,
por exemplo.
Barbosa
conta que, quando há excesso de água, as raízes agem como esponjas encharcadas,
vertendo o líquido não absorvido para lençóis freáticos no fundo. Dos lençóis
freáticos a água passa para os aquíferos.
O
professor diz que essa dinâmica começou a ser afetada radicalmente nos anos
1970, com a expansão da pecuária e de grandes plantações de grãos e algodão
pelo Cerrado.
A
nova vegetação tem raízes curtas e não consegue transportar a água para o
fundo.
Pior:
entre a colheita e o replantio, as terras ficam nuas, fazendo com que a água da
chuva evapore antes de penetrar o solo. Em alguns pontos do Cerrado, como no
entorno de Brasília, o uso de água subterrânea para a irrigação prejudica ainda
mais a recarga dos aquíferos.
Em
fevereiro, Brasília começou a racionar água pela primeira vez na história - e
meses antes do início da temporada seca.
Migração de nascentes
Conforme
os aquíferos deixaram de ser plenamente recarregados, Barbosa diz que se
acelerou na região um fenômeno conhecido como migração de nascentes.
Para
explicar o processo, ele recorre à imagem de uma caixa d'água com vários furos.
Quando diminui o nível da caixa d'água, o líquido deixa de jorrar dos furos
superiores.
Com
os aquíferos ocorre o mesmo: se o nível de água cai, nascentes em áreas mais
elevadas secam.
Ele
diz ter presenciado o fenômeno num dos principais afluentes do São Francisco, o
rio Grande, cuja nascente teria migrado quase 100 quilômetros a jusante desde
1970.
O
mesmo se deu, segundo Barbosa, nos chapadões no oeste da Bahia e de Minas
Gerais: com a retirada da cobertura vegetal, vários rios que vertiam água para
o São Francisco e o Tocantins sumiram.
O
professor diz que a perda de afluentes reduziu o fluxo dos rios e baixou o
nível de reservatórios que abastecem cidades do Nordeste, Centro-Oeste e Norte.
Em
2017, segundo a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), o
número de municípios brasileiros em situação de emergência causada por longa
estiagem chegou a 872, a maioria no Nordeste.
Já
em São Paulo as chuvas de verão aumentaram os níveis das represas e afastaram
no curto prazo o risco de racionamento. Mas Barbosa afirma que a maioria dos
rios que cruza o Estado é alimentada pelo aquífero Guarani, cujo nível também
vem baixando.
O
aquífero abastece toda a Bacia do Paraná, que se estende do Mato Grosso ao Rio
Grande do Sul, englobando ainda partes da Argentina, Paraguai e Uruguai.
Fotografia do passado
Bastaria então replantar o Cerrado para garantir a recarga dos aquíferos?
A
solução não é tão simples, diz o professor. Ele conta que o Cerrado é o mais
antigo dos biomas atuais do planeta, tendo se originado há pelo menos 40
milhões de anos.
Segundo
ele, olhar para o Cerrado é como olhar para uma fotografia do passado.
"O
Cerrado já atingiu seu clímax evolutivo e precisa, para o seu desenvolvimento,
de uma série de fatores que já não existem mais."
Ele
exemplifica: há plantas do Cerrado que só são polinizadas por um ou outro tipo
de abelhas ou vespas nativas, várias das quais foram extintas pelo uso de
agrotóxicos nas lavouras. Essas plantas poderão sobreviver, mas não serão mais
capazes de se reproduzir.
O
Cerrado também é uma espécie de museu porque muitas de suas plantas levam
séculos para se desenvolver e desempenhar plenamente suas funções ecológicas. É
o caso dos buritis, uma das árvores mais famosas do bioma, que costuma brotar
em brejos e cursos d'água.
Barbosa
costuma dizer que, quando Cabral chegou ao Brasil, os buritis que vemos hoje
estavam nascendo.
Mesmo
plantas de pequeno porte costumam crescer bem lentamente. O capim
barba-de-bode, por exemplo, leva mais de mil anos para atingir sua maturidade.
Barbosa diz ter medido as idades das espécies com processos de datação em
laboratório.
Parceria com animais
Sabe-se hoje da existência de cerca de 13 mil tipos de plantas no Cerrado, número que o torna um dos biomas mais ricos do mundo. Dessas espécies, segundo o professor, não mais que 200 podem ser produzidas em viveiros.
Ele
conta que a ciência ainda não consegue reproduzir em laboratório as complexas
interações entre os elementos do bioma, moldadas desde a era Cenozoica.
Barbosa
diz, por exemplo, que muitas plantas do Cerrado têm sementes que são ativadas
apenas em situações bem específicas. Algumas delas só têm a dormência quebrada
quando engolidas por certos mamíferos e expostas a substâncias presentes em
seus intestinos.
Há
ainda sementes que precisam do fogo para germinar. Contrariando o senso comum,
Barbosa diz que incêndios naturais são essenciais para a sobrevivência do
Cerrado e podem ocorrer de duas formas.
Uma
delas se dá quando blocos de quartzo hialino, um tipo de cristal, agem como
lentes que concentram a luz do sol, superaquecendo a vegetação.
A
outra ocorre pela interação entre algumas plantas e animais do Cerrado, entre
os quais a raposa, o lobo-guará, o tamanduá-bandeira e o
cachorro-do-mato-vinagre.
Segundo
Barbosa, esses mamíferos carregam no pelo uma carga eletromagnética que, em
contato com gramíneas secas, provoca faíscas.
O
professor diz que o fogo é necessário não só para ativar sementes, mas para
permitir que gramíneas secas, que não têm qualquer função ecológica, sejam
substituídas por plantas novas.
"Se
a gramínea seca fica ali, não tem como rebrotar, então é preciso dessa lambida
de fogo natural pra limpar aquele tufo."
Os
incêndios também são importantes, segundo ele, para que o solo do Cerrado
continue pobre - afinal, foi nesse solo que o bioma se desenvolveu.
"O
fogo é paradigma para quem pensa na preservação. Se você pensa como agrônomo, o
fogo é nocivo, porque acentua o oligotrofismo do solo."
Estancar os danos
Quando deixa de haver incêndios naturais, os animais e insetos nativos desaparecem e as plantas do Cerrado são derrubadas, é quase impossível reverter o estrago, diz Barbosa.
Mesmo
assim, ele defende preservar toda a vegetação remanescente para estancar os
danos.
Barbosa
diz torcer para que, um dia, a ciência encontre formas de recuperar o bioma.
"Claro
que você não vai reocupar toda a área que está produzindo [alimentos], mas você
pode pelo menos tentar amenizar a situação nas áreas de recarga de
aquíferos."
Sua
preocupação maior é com a fronteira agrícola conhecida como Matopiba, que
engloba os últimos trechos de Cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Nos últimos anos, a região tem experimentado uma forte expansão na produção de
grãos e fibras.
"Se
esse projeto continuar avançando, será o fim: aí podemos desacreditar qualquer
possibilidade, porque não teremos nem matriz para experiências em
laboratório."
Nesse
cenário, diz Barbosa, os aquíferos do Cerrado rapidamente se esgotarão.
"Os
rios vão desaparecer e, consequentemente, vai desaparecer toda a atividade
humana da região, a começar das atividades agropastoris."
"Teremos
uma convulsão social", ele prevê.
Via bbcbrasil
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