Durante o caminho que percorreu
do continente africano até a América – passando pela Ásia e cruzando o oceano
Pacífico –, o Zika vírus (ZIKV) passou por um processo de adaptação ao
organismo humano, adquirindo certas características genéticas que tornaram cada
vez mais eficiente sua replicação nas células do novo hospedeiro.
A conclusão é de um estudo
divulgado no site bioRxiv (pronuncia-se "bio-archive") por
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Institut Pasteur de
Dakar, no Senegal, que chamam a esse processo adaptativo do vírus de “processo
de humanização”.
"O ZIKV é um agente
zoonótico africano que infecta principalmente macacos e mosquitos. Estudos
anteriores sugerem que teriam ocorrido casos esporádicos de infecção em humanos
no passado e o vírus teria saído da África por volta da segunda metade do século
20. Em 2007 ele causou um primeiro surto em humanos e parece ter havido um
processo concomitante de adaptação pelo qual o código genético do vírus passou
a mimetizar os genes humanos mais expressos para produzir em maior quantidade
proteínas que tornam eficiente sua replicação no novo hospedeiro”, contou Paolo
Marinho de Andrade Zanotto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB)
da USP e coautor do artigo.
Entre os genes que o ZIKV passou
a mimetizar de forma mais evidente destaca-se o da proteína NS1, cujo papel é
modular a interação entre o vírus e o sistema imunológico humano.
“A NS1, produzida em grande
quantidade, funciona como um sistema de camuflagem para flavivírus, como o
vírus da dengue, de quem o ZIKV é o parente mais próximo. Ela deixa o sistema
imunológico desorientado. É o mesmo princípio usado por aviões de guerra ao
liberar pequenos fogos para despistar os mísseis guiados pelo calor da
turbina”, explicou Zanotto.
Os resultados da pesquisa mostram
ainda que o chamado “valor adaptativo” da espécie (fitness) – que é capacidade
de sobreviver e gerar uma progênie também capaz de sobreviver e de se
reproduzir – cai drasticamente por volta do ano 2000, quando estaria ocorrendo
forte seleção possivelmente associada ao processo de tráfego entre espécies.
A partir desse ponto, o fitness
do Zika vírus passa a crescer exponencialmente. Os gráficos do artigo sugerem
que o patógeno já se tornou tão (ou mais) eficiente para sobreviver e se
reproduzir em humanos quanto era antes em macacos.
A investigação foi conduzida com
apoio da FAPESP durante o doutorado de Caio César de Melo Freire, sob a
orientação de Zanotto.
O grupo analisou dados de 17
sequenciamentos completos do genoma viral – que continham informação sobre o
ano e o local em que o vírus foi isolado – depositados no GenBank, um banco
público mantido pelo National Center for Biotechnology Information (NCBI), nos
Estados Unidos.
Com base nessas análises e também
em um trabalho anterior do grupo, publicado em 2014 na revista PLoS Neglected
Tropical Diseases, foi possível determinar o caminho percorrido pelas linhagens
africanas e asiáticas e também as alterações genéticas sofridas no percurso.
Conforme explicam os autores no
artigo mais recente, a linhagem africana ainda infecta predominantemente macacos
e mosquitos do gênero Aedes.
Já a linhagem asiática está se
espalhando por meio de uma cadeia de transmissão entre humanos nas ilhas do
Pacífico e na América do Sul.
Além da picada do mosquito, os
cientistas apontam as relações sexuais e as infecções perinatais como rotas
alternativas de transmissão.
Mundo em alerta
O primeiro surto significativo
conhecido em humanos, causado pela linhagem asiática em 2007, ocorreu nos Estados
Federados da Micronésia.
Entre 2013 e 2014 o vírus emergiu
novamente e causou uma significante epidemia na Polinésia Francesa,
espalhando-se pela Oceania e chegando à América pela Ilha de Páscoa, no Chile,
em 2014.
Agora, em 2015, já foi reportado
em pelo menos 14 estados brasileiros, a maioria na Região Nordeste, e também em
outros países da América do Sul.
“As análises feitas com base em
dados genéticos sugerem que o vírus está se tornando mais eficiente para
produzir suas proteínas em humanos, mas agora precisamos confirmar essa
hipótese com ensaios in vitro, colocando linhagens africanas e asiáticas em
culturas de células humanas para estabelecer comparações”, comentou Zanotto.
O pesquisador também está
organizando uma parceria com cerca de 25 laboratórios de diferentes regiões do
Estado de São Paulo para monitorar como está sendo o espalhamento do vírus na
região.
Várias unidades dessa rede vão
trabalhar diretamente na questão das malformações cerebrais congênitas em
associação com serviços de neonatologia.
“Estamos ajustando protocolos
comuns para identificar, caracterizar e isolar o vírus. Dada a experiência de
nossos colegas na África, o isolamento do vírus em humanos pode apresentar
problemas e provavelmente teremos de isolar também de mosquitos. Também
pretendemos somar esforços no desenvolvimento da expressão de proteínas virais
para facilitar a detecção da doença e estamos articulando ações conjuntas e
trocando informações diariamente grupos internacionais. Será uma tarefa pesada,
mas não temos outra opção, uma vez que o vírus parece de fato estar envolvido
nos casos de microcefalia”, disse Zanotto.
Na última terça-feira (01/12), a
Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta mundial reconhecendo a
relação entre a epidemia de Zika vírus e o crescimento dos casos de
microcefalia e da síndrome Guillain-Barré no Brasil.
No documento, a OMS recomendou
que seus mais de 140 países-membros reforcem a vigilância para o eventual
crescimento de infecções, sugeriu o isolamento dos pacientes e disse para as
nações ficarem atentas à necessidade de se ampliar o atendimento de serviços
neurológicos e de cuidados específicos a recém-nascidos.
“Recebemos de nossos colegas do
Institut Pasteur, há alguns dias uma notificação do Serviço de Vigilância
Sanitária em Papeete, na Polinésia Francesa, dizendo que após reavaliar os
dados relacionados a crianças gestadas durante o surto local de ZIKV em 2014 e
2015 foram encontrados 12 casos de mulheres que tiveram filhos com complicações
neurológicas sérias. Destas, quatro foram testadas e apresentaram anticorpos
contra ZIKV, mas nehuma manifestou sintomas da doença durante a gravidez”,
contou Zanotto.
De acordo com o pesquisador, é
preciso investigar se há uma interação entre o vírus da dengue e o ZIKV no desenvolvimento
da microcefalia.
“É possível que o vírus da dengue
– por ser muito comum nessas regiões – seja apenas um fator de confusão”,
avaliou.
Além de causar sintomas
parecidos, explicou Zanotto, os vírus da dengue e Zika são muitos próximos
filogeneticamente.
No estudo mais recente, o grupo
mostrou que ambos compartilham pedaços da proteína NS1 considerados epítopos,
ou seja, que são capazes de serem reconhecidos pelos anticorpos humanos.
“Como os dados desse estudo são
de grande relevância mundial optamos por torná-los público imediatamente por
meio desse arquivo público on-line. Agora pretendemos submetê-lo para revistas
científicas”, contou Zanotto.
Fonte exame
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